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Sinuê Neckel Miguel

Tenho andado distraído

“Se um dia qualquer/Ter lucidez for o mesmo que andar/E não notares que andas/O tempo inteiro”. (Vitor Ramil. Loucos de cara)

 

Depois de falar sobre a ameaça do fim do mundo e antes de seguir elencando evidências que sustentam o gravíssimo diagnóstico esboçado, quero abrir um parêntesis. Mais do que isso. Creio ser fundamental estabelecer um corajoso pacto de adesão a um estado de espírito de séria circunspecção. Um pacto pelo despertar.


Em tempos de acirrada disputa pela atenção sob um intoxicante e massivo entretenimento compulsivo, parece cada vez mais difícil falar a sério. Sim, também se pode falar de coisa séria com humor (como se fazia no programa "Greg News"). Mas creio que, diante do peso da realidade, nos predispomos à fuga, à distração, a vivermos em ficções paralelas ao real. Tampouco se trata apenas do gosto humano pela arte, pela criação de narrativas, mas sim de uma sociedade inteira submersa à lógica do espetáculo, do entretenimento, tal como defendera Guy Debord antes mesmo da era da internet de massas. Assim vaticinara:


"À medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho se torna necessário. O espetáculo é o sonho mau da sociedade moderna aprisionada, que só expressa afinal o seu desejo de dormir. O espetáculo é o guarda desse sono." (Guy Debord, "A sociedade do espetáculo")


Cena do filme "Não olhe para cima" (Netflix)


Mesmo ativistas sociais e militantes políticos acabam por se utilizar de táticas de comunicação para fisgar o público com humor e doses de entretenimento. Quanto maior a dependência da comunicação via “redes sociais” (ou antissociais), mais difícil é escapar à sua lógica. No filme “Não olhe para cima” o paroxismo desse nosso espírito de época é retratado com o comportamento coletivo capaz de transformar o fim do mundo em espetáculo para o entretenimento das massas.


Trata-se também de uma infantilização coletiva: tudo tem de ser divertido, o tempo todo. O que, evidentemente, se articula ao adestramento para o consumo compulsivo de entretenimento.


Uma sociedade assim moldada tem condições de encarar uma ameaça existencial? Tem condições de responder à altura ao risco cada vez mais grave de um colapso climático e ecológico global?


Parece-me evidente que não temos, hoje, a menor condição de suportarmos tamanho peso. A constatação é, então, inequívoca (e talvez desesperadora): não há chance de evitarmos os piores futuros possíveis se formos incapazes de encará-los face a face. Essa é a pré-condição fundamental: lucidez.


Embriagados de entretenimento que estamos, nada faremos de decisivo. É por isso que a primeira etapa para a revolução urgente e necessária é uma espécie de despertar, de saída desse estado de distração permanente. Podemos compreender tal despertar em diversos sentidos. Uma das suas formas de compreensão se situa na sua dimensão espiritual.


Do próprio movimento ecológico emergiram correntes espiritualizadas, como a ecologia profunda, de Arne Næss a Joanna Macy, enquanto as religiões tradicionais, a seu turno, movem-se, em menor ou maior medida, para vias confluentes à “família” das ecologias, como é o caso emblemático da encíclica "Laudato Si" com a proposta de uma ecologia integral católica. A iniciativa Fé no Clima, promovida pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), congrega o crescente engajamento de jovens lideranças entre as mais diversas denominações religiosas para o enfrentamento da emergência climática.


COP26, em Glasgow: Milhares de jovens pedem urgência e justiça nas pautas de mudanças climáticas (Christopher Furlong/Getty Images)


O despertar, além de uma dimensão espiritual, tem uma dimensão política, explicitada, por exemplo, nas lutas socioambientais e na crítica ecossocialista do caráter intrinsicamente insustentável do capitalismo. As greves pelo clima, ou Fridays for Future, lideradas por Greta Thunberg e o movimento Extinction Rebellion na Europa são outros exemplos de engajamento político. No Brasil, o movimento indígena tem sido a linha de frente contra a devastação ambiental, lutando pela preservação das florestas – fundamentais para a nossa sobrevivência.

Por caminhos diversos, mas assemelhados, trata-se de uma busca por alternativas ao modo de vida dominante, ao qual podemos simplesmente chamar de capitalismo.


Olhemos, então, com coragem para onde esse modo de vida capitalista está nos levando. Há dez meses testemunhamos a quebra de recordes climáticos de temperatura terrestre e oceânica, extrapolando até mesmo os prognósticos estabelecidos pelos modelos climáticos usados pelo IPCC, o Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas da ONU. Isso pode significar que os cenários mais graves de aquecimento global podem ser antecipados em décadas! E que o já exíguo prazo para zerar as emissões líquidas de gases de efeito estufa (a meta do Acordo de Paris é de redução em 50% até 2030 e de zero emissões até 2050) a fim de não ultrapassarmos o limite de 1,5ºC de aumento da temperatura já não faça muito sentido, pois já atingimos essa temperatura (embora não saibamos se ela continuará nesse patamar nos próximos anos). Claro, todo o aquecimento que pudermos evitar importa, e muito! Mas o fato é que há sinais de que a gravidade de nossa situação é cada vez mais extrema.


Enchente no Rio Grande do Sul, 2023 (Foto: Diego Vara/Reuters)


Os últimos anos são eloquentes em revelar como já estamos vivendo sob um crescente aumento da frequência e intensidade de eventos climáticos extremos (furacões, incêndios, enchentes, secas, ondas de calor extremo etc.). Na passagem de 2019 para 2020, após uma seca recorde, a Austrália foi devorada pelas chamas, com mais de 10 milhões de hectares incinerados, levando consigo cerca de 1 bilhão de animais (mamíferos, aves e repteis, sem contabilizar insetos e invertebrados). Ainda em 2020, o Pantanal foi arrasado em 30% de sua área, com mais de 4 milhões de hectares queimados. Já em 2021, lembremos da crise hídrica no Brasil, mesmo ano em que foram quebrados recordes de calor no Hemisfério Norte, com impressionantes registros de 49,6ºC em Lytton, no Canadá, e 54,4ºC no Vale da Morte, Califórnia, seguindo-se mais uma forte temporada de incêndios que acompanham uma seca histórica que já dura 20 anos. Em 2022, o Paquistão teve um terço de seu território inundado, matando mais de mil pessoas e afetando outras 33 milhões, com prejuízos materiais da ordem de 50 bilhões de reais. Já no ano de 2023 a Amazônia enfrentou a pior seca já registrada, com diversas áreas tornando-se emissoras de gás carbônico, enquanto o Sul do Brasil passou por um ciclone extratropical que deixou milhares de desabrigados. O Hemisfério Norte teve o verão mais quente da sua história, com secas, inundações e incêndios florestais. Em 2024, com sucessivas ondas de calor, estamos vivendo o maior surto de dengue já registrado, o que também se deve às mudanças climáticas em curso.

Sim, até aqui, temos andado distraídos. Mas já não podemos mais continuar seguindo nossas vidas normalmente. Declaremos, para nós mesmos, estado de emergência climática. Despertos, atentos, lúcidos, poderemos reagir.


Que da nossa lucidez nasça a força necessária para a profunda e urgente transformação global de que precisamos.

 

Para saber mais, recomendo:

BARRETO, Eduardo Sá. O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.

_______. Ecologia marxista para pessoas sem tempo. São Paulo: Usina Editorial, 2022.

BONNEUIL, Christophe e FRESSOZ, Jean-Baptiste. L’événement Anthropocène : la Terre, l’histoire et nous. Paris: Éditions du Seuil, 2016.

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 2007.

MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.

_______. O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Editora Elefante, 2023.

WALLACE-WELLS, David. A terra inabitável: uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Canal no YouTube: O que você faria se soubesse o que eu sei?  sob o comando do prof. Alexandre Araújo Costa.


Sinuê Miguel

 

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