Há alguns anos, tive a ideia de organizar um livro que falasse sobre nossas variadas fomes. Inspirei-me em uma das bem-aventuranças proferidas por Jesus Cristo no Sermão do Monte (“Bem-aventurados os famintos e sedentos de justiça porque serão saciados”) e também na canção “Comida”, composta e gravada pelo grupo de rock Titãs (“A gente não quer só comida. A gente quer bebida, diversão, balé...”).
Para tanto, convidei alguns amigos escritores. Cada um seria responsável por um capítulo. E perguntei do que eles tinham fome como cidadãos e como a doutrina espírita (professada por mim e por eles) poderia ajudar a saciar tais fomes. O resultado foi o livro “Fome de quê?”, com 25 capítulos falando sobre fome de saúde, gentileza, justiça, alegria, cidadania, motivação, esperança, entre outros assuntos. Publicado em 2018 pela Ed. EME, a obra deu tão certo que passou a ser estudada em vários centros espíritas e foi até tema de palestras e seminários.
Como muitos assuntos por mim listados não couberam no livro, achei por bem, tempos depois, organizar um segundo volume, desta vez com ênfase na sede. Dei a ele o nome de “Temos sede”. Publicado recentemente pela Ed. Comenius, lá estão outros 23 autores discorrendo sobre sede de consciência, mansidão, lucidez, igualdade, audácia, cultura, sustentabilidade etc.
Estive pensando sobre fomes e sedes durante o fim de semana porque tomei conhecimento da obra do pouco conhecido poeta brasileiro Solano Trindade (1908-1974). Negro e pernambucano, Solano migrou para o Sudeste ainda moço, participou do movimento negro de então, integrou vários grupos artísticos e elencos de produções cinematográficas, além de ser autor do notável poema intitulado “Tem gente com fome”, que foi censurado à época da ditadura Vargas (1930-1945) e também na ditadura militar, que infelicitou o país de 1964 a 1985. Nesse período, o referido poema foi musicado pelo grupo Secos & Molhados, mas a censura barrou a gravação. Em 1979, já na época da reabertura política, Ney Matogrosso gravou. Durante o período Vargas, no entanto, convém ressaltar que Solano foi preso e torturado devido ao poema. Afinal, ditaduras não gostam de denúncias sobre injustiça social, muito menos ser provocadas pela lucidez da arte.
A fome de Solano Trindade continua sendo a fome de todos nós: fome de comida farta e de qualidade na mesa do brasileiro. Mas me atrevo a dizer que esta fome abrange as muitas fomes (e também sedes) por algo mais, conforme tentei mostrar nas duas obras por mim idealizadas e organizadas. Afinal, quando a fome e a sede físicas estiverem plenamente saciadas, o povo começará a perceber que existem outras fomes e sedes. Será o mel além do pão; o néctar além da água. Aí, ninguém irá segurar homens, mulheres e crianças com estômago e espírito bem alimentados.
Enquanto isso não acontece, fiquemos com “Tem gente com fome”, o poema obra-prima de Solano Trindade:
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Piiiiii
Estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral, Lucas
Cordovil, Brás de Pína
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria, Ramos,
Bonsucesso, Carlos Chagas
Triagem, Mauá
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar
Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
Mas o freio de ar
todo autoritário
manda o trem calar
Pisiuuuuuuuuu
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