Na última sexta-feira, dia 19 de abril, comemorou-se o Dia dos Povos Indígenas: os Guajajara, os Kaiowá, os Kaingang, os Ticuna, os Yanomami, os Xavante, os Krenak, os Makuna, os Tabajara, os Pataxó, os Kalapapo, os Potiguara, os Munduruku e tantos outros. Trata-se de celebrar a existência dos mais de 305 (já foram mais de mil) povos indígenas residentes no Brasil, mas também a luta reivindicatória de uma população de aproximadamente 1,7 milhão de pessoas (Censo IBGE 2022). Se até os anos 1970 acreditava-se que esses povos fatalmente desapareceriam, sua recuperação demográfica hoje representa também uma esperança decisiva para toda a humanidade.
Sim, não obstante muitos (talvez a maioria de nós), equivocadamente, não nos sintamos muito próximos dos povos indígenas, o destino comum da humanidade depende do destino daqueles que portam em seus corpos e em sua história as raízes da civilização brasileira. A sua história foi, é e será parte integrante da nossa história – como comunidade de brasileiros e como espécie humana.
Acampamento Terra Livre, abril de 2024, em Brasília — Foto: TV Globo/Reprodução/Leandro Lima
Embora hoje possamos identificar uma sensibilidade crescente com relação às lutas indígenas por condições de sobrevivência, reconhecimento e autonomia, na maior parte da história brasileira predominou o extermínio e os esforços coloniais pela submissão de corpos e almas nativas. Sempre houve resistências, sob diversas condições e estratégias (de guerras a negociações políticas e adaptações culturais), variando entre o imensamente diverso conjunto de povos originários da América. Mas é só muito recentemente, desde a Constituição de 1988, que há um reconhecimento estatal da legitimidade dos modos de existência dos povos originários do território brasileiro.
Documentário Somos Guardiões (Netflix, 2024)
O avanço das lutas dos povos indígenas no século 21 tem levado a conquistas importantes, como a obrigatoriedade do ensino de sua história. Infelizmente, porém, os conflitos detonados em razão da cobiça pelas terras ocupadas (demarcadas ou não) por indígenas jamais arrefeceram. Tais conflitos são particularmente intensos nas zonas de expansão da fronteira agropecuária e de predação de empresas de mineração, garimpo e madeireiras. Como diz o escritor e ativista Ailton Krenak, “as invasões nunca tiveram fim, nós estamos sendo invadidos agora”, “nós estamos em guerra, o seu mundo e o meu mundo estão em guerra” (Guerras do Brasil.doc / Netflix). Hoje, as terras indígenas ocupam 13% do território nacional. E isso pode ser crucial para a nossa sobrevivência. Para entender o porquê, precisamos compreender a importância da floresta em pé.
Queimada na Amazônia no dia 15 de agosto de 2020.CARL DE SOUZA (AFP)
Segundo o Observatório do Clima, olhando o perfil dos últimos 30 anos, enquanto as emissões médias em escala global se vinculam principalmente ao setor de energia (73%), as emissões de gases de efeito estufa do Brasil se devem majoritariamente (cerca de 80%) ao desmatamento e ao uso do solo para a agropecuária. Além da brutal devastação do cerrado, temos a floresta amazônica na linha de frente desse processo de aniquilação da vida.
Vastas áreas da floresta amazônica remanescente estão cada vez mais degradadas. Um estudo que quantificou essa degradação mostrou que, até 2018, 2,5 milhões de km² já estavam afetados, ou seja, 38% de sua área remanescente (David M. Lapola et al. The Drivers and Impacts of Amazon Forest Degradation, Science, v. 379, n. 6.630, 27 jan. 2023). Os anos do governo Bolsonaro foram particularmente destrutivos: em razão do aumento das queimadas, do desmatamento e da degradação da floresta, as emissões de gases de efeito estufa aumentaram 122% em 2020, em comparação com a média registrada entre 2010 e 2018. No biênio 2019-2020 o número de cabeças de boi na Amazônia aumentou 13%, a área plantada de soja cresceu 68%, e a de milho, 58%, enquanto a exportação de madeira bruta aumentou 683% (Gatti, L.V., Cunha, C.L., Marani, L. et al. Increased Amazon carbon emissions mainly from decline in law enforcement. Nature 621, 318–323, 2023).
A floresta degradada está cada vez menos resiliente às próprias mudanças climáticas, deixando de ser um sumidouro de carbono para se tornar uma fonte de emissão de CO2. Se não houvesse essa degradação, o balanço de carbono da floresta amazônica seria neutro (equilíbrio entre emissão e absorção).
Sem a Amazônia e seus “rios voadores” (formados por evapotranspiração), grande parte do Brasil enfrentará severa crise hídrica, colocando em risco nossa segurança alimentar e energética. Além disso, toneladas de carbono hoje estocado serão liberadas, acelerando o aquecimento global ao ponto de inviabilizar a meta que visa estabelecer um limite de segurança: a faixa entre 1,5ºC e 2ºC de aumento da temperatura.
Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real
Para os Yanomami, como nos conta o xamã e líder Yanomami Davi Kopenawa, trata-se de evitar a queda do céu, isto é, o que está em jogo é a manutenção da integridade da biosfera, ou hutukara, para evitarmos um novo colapso cataclísmico, tal como o da primeira queda do céu, em tempos imemoriais.
Voltamos então aos povos indígenas, mobilizados, desde o dia 22 de abril no Acampamento Terra Livre em Brasília. Sem assegurar a demarcação e integridade de terras indígenas, não teremos chance de reverter o processo de degradação de biomas que asseguram a nossa própria existência, com chuvas, fertilidade da terra e estocagem de carbono. Não deve restar dúvida, portanto, que devemos formar fileiras nessa guerra pela vida ao lado dos povos originários.
Para saber mais, recomendo:
BARRETO, Eduardo Sá. O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
_______. Ecologia marxista para pessoas sem tempo. São Paulo: Usina Editorial, 2022.
BONNEUIL, Christophe e FRESSOZ, Jean-Baptiste. L’événement Anthropocène : la Terre, l’histoire et nous. Paris: Éditions du Seuil, 2016.
KOPENAWA, Davi e ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.
_______. O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Editora Elefante, 2023.
WALLACE-WELLS, David. A terra inabitável: uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Canal no YouTube: O que você faria se soubesse o que eu sei? sob o comando do prof. Alexandre Araújo Costa.
Documentário Guerras do Brasil.doc, Episódio 1. Disponível no YouTube e Netflix.
Documentário Somos Guardiões. Disponível na Netflix.
Site do Instituto Socioambiental: www.socioambiental.org
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