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Sinuê Neckel Miguel

Perdendo o controle: a ameaça dos pontos de inflexão

Já assinalamos, em textos anteriores, a nossa trajetória rumo ao abismo do aquecimento global. Trajetória em aceleração que nos deixa com cada vez menos tempo para evitarmos os piores futuros possíveis. Como se não bastassem os impactos já gravíssimos do crescente aquecimento em curso, existe um conjunto de ameaças que podem nos lançar numa via ainda mais catastrófica, com potencial de aniquilação das condições de habitabilidade do Planeta para a nossa espécie e boa parte das atuais formas de vida na Terra.


Estamos falando dos chamados tipping points (pontos de virada) climáticos, limiares ou pontos críticos nos quais uma pequena perturbação adicional pode alterar qualitativamente o estado ou o desenvolvimento de um sistema relacionado ao clima. O entendimento desses limiares se torna mais agudo se pensarmos em termos de risco.


Eventos futuros de baixa probabilidade de ocorrência, mas que têm um impacto extremo (como a morte de centenas de milhões de pessoas), já implicam um nível de risco substancial. Se a probabilidade de sua ocorrência vai de possível até muito provável, o risco deve ser considerado intolerável. É exatamente disso que se trata quando falamos de emergência climática – o que fica mais claro ainda quando olhamos para os seus tipping points.


O sexto relatório de avaliação do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), afirmou que os riscos de desencadear pontos de inflexão climáticos se tornam altos em cerca de 2°C acima das temperaturas pré-industriais e muito altos em 2.5-4°C. Outras avaliações já consideram altamente provável que a ultrapassagem de 1,5ºC deva impelir à ultrapassagem de diversos tipping points. De acordo com o trabalho Exceeding 1.5°C global warming could trigger multiple climate tipping points (Excedendo 1.5ºC de aquecimento global pode desencadear múltiplos pontos de virada climática), de David Armstrong Mckay e colegas, publicado na revista Science, em 2022, seis elementos críticos do sistema Terra já devem provavelmente ultrapassar pontos drásticos (e, portanto, colapsar), mesmo num nível de aquecimento global abaixo de 2ºC: o gelo da Groenlândia; o gelo da Antártida Ocidental; os recifes de corais tropicais; o permafrost das orestas boreais; o permafrost do Mar de Barents e a corrente marinha do Labrador.


Esses pontos críticos de inflexão irreversíveis na dinâmica do clima constituem, em seu conjunto (com efeitos cascata e de retroalimentação), o maior dos nossos temores, já que o colapso socioambiental pode fugir completamente à possibilidade de controle, mitigação e adaptação humanas. Vejamos alguns desses pontos críticos.

 

O derretimento do gelo ártico é um gravíssimo ponto de inflexão climático com efeito de retroalimentação (feedback positivo). A retroalimentação se explica pelo efeito albedo. A superfície branca do gelo e da neve é altamente reflexiva da radiação solar, o que evita aquecimento adicional da superfície terrestre e das águas. Na medida em que o gelo ártico é reduzido ano a ano, a amplitude do efeito albedo também diminui e, assim, o aquecimento global aumenta, acelerando ainda mais o colapso desse mesmo gelo ártico. As projeções atuais mostram que, mesmo nos melhores cenários de redução das emissões, até 2050 deveremos perder completamente a cobertura de gelo marinho no Ártico durante os verões.


Aí vem um efeito cascata ou dominó, pois a perda do gelo marinho significa elevação adicional dos oceanos e mais aquecimento das águas, diminuindo sua capacidade de absorção de carbono e calor (o que acelera o aquecimento global), causando ainda problemas de mistura do oxigênio marinho (matando diversas espécies marinhas) e de circulação de correntes marítimas que regulam a distribuição de calor e frio entre o norte e o sul do Planeta. Além disso, oceanos mais aquecidos intensificam a taxa de evaporação oceânica e com isso contribuem para a produção de chuvas torrenciais. A tragédia do Rio Grande do Sul está ligada justamente ao enorme calor dos oceanos observado em 2023 e 2024.


Outro tipping point observado com enorme apreensão é o colapso das florestas tropicais, em particular o caso da Floresta Amazônica. Hoje, ela já está cerca de 17% desmatada, com outros 17% em diversos estágios de degradação. Estima-se que ela possa colapsar já com 20% de desmatamento, o que pode se dar entre 15 e 30 anos ou menos, a depender do ritmo de sua destruição. De fato, estudos recentes já apontam que determinadas áreas da Floresta Amazônica já se tornaram emissoras líquidas de CO2, devido ao processo de degradação em curso.

Fernando Donasci/Folhapress


Estima-se que as florestas capturaram cerca de 25% das emissões de gases de efeito estufa por queima de combustíveis fósseis desde 1960. A Floresta Amazônica contém aproximadamente de 150 a 200 Gt de carbono, o que equivale a cerca de 550 a 734 Gt de CO2, isto é, “de 16 a 22 anos das emissões globais desse gás associadas à geração de energia pela queima de combustíveis fósseis nos níveis de 2019” (MARQUES, 2023). Isto significa que se o colapso da Amazônia for consumado, gigantescas quantidades de gás carbônico serão liberadas, causando um aquecimento adicional capaz de precipitar outros elementos críticos do sistema climático na intrincada rede de tipping points.


Para o Brasil e outros países da América do Sul, além das emissões, o colapso da Amazônia implicaria uma catástrofe hídrica e, portanto, agrícola. Primeiramente, sem a floresta, a região amazônica aqueceria de 4ºC a 5ºC e o ar que hoje passa pela floresta chegando resfriado ao Cerrado estaria aquecido também em 4ºC a 5ºC, possivelmente tornando praticamente impossível a agricultura nessa região. Com o fim dos “rios voadores” (gigantescos cursos de água atmosféricos produzidos pela evapotranspiração das árvores amazônicas), sofreríamos com uma drástica redução da produção agrícola no Brasil e com uma crise energética sem precedentes, considerando os efeitos de uma situação de seca severa e prolongada sobre os reservatórios de água das usinas hidrelétricas.


A depender dos modelos de previsão e das teorias incorporadas, a redução de chuvas na Amazônia pode ser de 42% ou até mesmo 100%. Se a redução for de 42%, a floresta se converteria numa espécie de savana. Se a redução for de 100% (conforme prevê a teoria da bomba biótica) a floresta vira deserto. O pesquisador Antônio Donato Nobre evidencia que é graças aos rios voadores provenientes da Amazônia que a desertificação não se estabeleceu nas latitudes entre 20ºS e 35ºS no nosso continente (um quadrilátero delimitado por Cuiabá, ao norte; São Paulo, a leste; Buenos Aires, ao sul; e a Cordilheira dos Andes, a oeste), diferentemente do que se dá no imenso deserto da Austrália ou nos desertos do Kalahari, na África; e do Atacama, na América do Sul, onde ventos contra-alísios secos roubam a umidade.


Permafrost. Reprodução BBC Brasil


Já no norte do planeta, a principal ameaça é a “bomba de metano” representada pelo potencial de emissões do permafrost, solo permanentemente congelado que recobre 24% das terras do Hemisfério Norte. Se esse solo derreter rapidamente, o aquecimento global deverá se tornar apocalíptico, já que a quantidade de carbono orgânico nele contido é gigantesca: 1,5 trilhão de carbono, cerca de duas vezes mais de tudo o que circula na atmosfera. Mas, mesmo que a velocidade do derretimento não seja tão acelerada, seu caráter potencialmente “explosivo” ainda se verifica, posto que a capacidade de incremento do aquecimento global do metano é até cem vezes maior do que o do CO2 no curto prazo (cinco anos) e de 72 a 86 maior em médio prazo (20 anos), sendo ainda 34 vezes superior ao longo de 100 anos. Isso significa que a liberação de metano tem um potencial disruptivo enorme: ao alavancar um rápido aquecimento do Planeta, deverá forçar, num efeito dominó, a ruptura de vários pontos críticos, levando a mais aquecimento, o que induz a mais liberação de metano e assim sucessivamente, num efeito de retroalimentação.


Em suma, temos de entender que quanto mais calor em nosso Planeta, mais mecanismos de reforço ao aumento do aquecimento devem ser disparados. O aquecimento, que já está avançando em grande velocidade, poderá disparar, de modo a nos precipitar num cataclismo climático sem precedentes na história humana. O risco extremo que enfrentamos é de sofrermos, já nas próximas décadas, com o começo do fim da civilização, inviabilizando a sobrevivência de bilhões de seres humanos.

 

Para saber mais, recomendo:

BARRETO, Eduardo Sá. O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.

_______. Ecologia marxista para pessoas sem tempo. São Paulo: Usina Editorial, 2022.

LENTON, Thimoty et al. Climate Tipping Points: Too Risky to Bet against. Nature, 575, 592-595, 2019.

McKAY, David I. Armstrong et al. Exceeding 1.5°C global warming could trigger multiple climate tipping points. Science, 377, eabn7950, 2022.

MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.

_______. O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Editora Elefante, 2023.

NOBRE, Antonio Donato. O futuro climático da Amazônia. Relatório de Avaliação Científica. Articulação Regional Amazônica (ARA), 2014.

WALLACE-WELLS, David. A terra inabitável: uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Canal no YouTube: O que você faria se soubesse o que eu sei?  sob o comando do prof. Alexandre Araújo Costa.

 

1 Comment

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Ana Melo
Ana Melo
Jul 16
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excelente texto!

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