Para onde vamos? Ah, onde vamos parar?/ Nessa encruzilhada, que estrada vamos pegar?/ Que perigo de mau tempo, temporal,/ De temperatura em alta e de desastre existe pra todos nós afinal? (Carlos Rennó. Para onde vamos)
Escrevo sob o impacto da tragédia climática que se abate sobre o Rio Grande do Sul. A quarta no extremo sul do país em menos de um ano. Embora as enchentes dos últimos dias caracterizem a pior tragédia socioambiental da sua história, a ciência indica que elas serão superadas sucessivamente nos próximos anos por desastres cada vez mais frequentes e intensos. Essa é uma tendência global: o futuro do clima será, necessariamente, e cada vez mais, pior com relação ao presente. A questão crucial, hoje, é o quanto pior ele será.
Capa do jornal Correio do Povo
O século XX, sobretudo a partir da sua segunda metade, é o século da disparada da concentração de CO2 na atmosfera. Mas essa corrida desenfreada de intensificação do efeito estufa da atmosfera terrestre aumentou ainda mais em velocidade no século XXI, como podemos ver no gráfico abaixo (MARQUES, O decênio decisivo):
Emissões antropogênicas de CO2 entre 1750 e 2020, das quais 21,1% ocorreram entre 2011 e 2020.
A trajetória ascendente e acelerada das emissões coloca em xeque qualquer expectativa otimista para nosso futuro próximo. Essa trajetória aponta para um clima cada vez mais hostil à vida em geral e à existência humana em particular.
O ano de 2020 foi considerado pelos mais eminentes cientistas do clima a data limite para iniciar uma drástica trajetória de redução das emissões de GEE a fim de garantir a não ultrapassagem do limiar de 2ºC de aquecimento – apontado pelo Acordo de Paris (2015) como meta para evitarmos consequências catastróficas. Como sabemos hoje, de lá para cá as emissões seguem aumentando, o que lança o nosso planeta para um inevitável aquecimento de ao menos 2ºC, muito provavelmente já para a década de 2040.
Na verdade, se iniciássemos uma drástica redução de emissões em 2025 ainda seria teoricamente possível evitarmos a catastrófica ultrapassagem do limiar de 2ºC. Todavia, o prazo para zerar as emissões líquidas seria de apenas 10 anos – um feito revolucionário que implicaria o desmonte da economia global visto que a demanda energética segue crescendo, com projeções de aumento para petróleo e gás, bem como a manutenção do atual consumo de carvão.
O fato é que em 2023 e 2024 cruzamos a linha de 1,5ºC – em princípio temporariamente, mas com a possibilidade de estarmos numa arrancada abrupta de aquecimento global. De acordo com o 6º Relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC, no pior dos cenários projetados de aumento da temperatura chegaremos a 4,4ºC (num arco de estimativas prováveis que variam entre 3,3ºC e 5,7ºC) entre 2081 e 2100 (ver Gráfico 1 e Tabela 1).
Gráfico 1
Tabela 1
Fonte: IPCC AR6 WGI (adaptado da versão original em inglês)
As consequências são assustadoras. Um exemplo: em cinquenta anos, 1,2 bilhão de pessoas na Índia viverão em áreas tão quentes quanto o Saara, se as emissões de GEE continuarem aumentando. (MARQUES, O decênio decisivo). Nos piores cenários, até 2100, 40% da superfície habitada da Terra sofrerá com secas intensas e metade das espécies conhecidas serão extintas. Ao ultrapassarmos um aquecimento médio global de 3.2 ºC, nas áreas urbanas, onde se concentra a maior parte da humanidade, o aquecimento será de 5.6 ºC. Isso, em regiões tropicais, caracterizadas por elevadas temperaturas e umidade, já significa ultrapassar o limite da habitabilidade humana, em razão do estresse térmico letal.
De acordo com o estudo "Quantifying the human cost of global warming", de Timothy Lenton, Chi Xu e outros, publicado na Nature Sustainability, num futuro de +3.6 ºC ou +4.4 ºC (os piores cenários), cerca de metade da humanidade poderá estar fora do seu nicho climático histórico, estando sob risco existencial. O estudo leva em conta apenas a referência da temperatura média histórica que permitiu o desenvolvimento de populações, incluindo fatores como fertilidade agrícola. Portanto, não incorpora outros impactos climáticos, como o aumento do nível do mar ou ondas de calor extremo. Ou seja, a conta das áreas tornadas praticamente inabitáveis deverá ser ainda maior. Seremos bilhões de refugiados climáticos em busca de sobrevivência num planeta cada vez mais hostil.
Essa hostilidade diz respeito a uma série de fenômenos. É o caso das ondas de calor extremo, que já estão cada vez mais frequentes. Estima-se que com um aquecimento global de 2ºC, do qual nos aproximamos rapidamente, enfrentaremos 13.9 vezes mais ondas de calor com relação ao período 1850-1900 e tomando como referência eventos que aconteciam a cada 50 anos. Algo similar acontecerá com a frequência e intensidade das arrasadoras chuvas torrenciais, tal como as que testemunhamos agora no sul do Brasil (Maximilian Kotz, Stefan Lange, Leonie Wenz, Anders Levermann. Constraining the pattern and magnitude of projected extreme precipitation change in a multi-model ensemble. Journal of Climate, 2023).
A insolação matou 13 pessoas na Índia depois que cerca de um milhão de espectadores esperaram horas ao sol em uma cerimônia de premiação nos arredores de Mumbai, em 16 de abril de 2023. © AFP
O aquecimento global impactará fortemente na produção de alimentos. Estimativas apontam para perdas de cerca de 30% em culturas como trigo, milho, arroz e soja ao ultrapassarmos 3º de aumento da temperatura. Mas, para além dessa catastrófica redução na produção, existe o risco crescente de quebras de safra simultâneas, visto a multiplicação de ondas de calor extremo no planeta
Com o avanço do aquecimento global, da degradação das florestas tropicais e do uso intensivo de água para a indústria e agricultura, a escassez hídrica deverá se espalhar para regiões do planeta habituadas à fartura de água. A agricultura brasileira será atingida em cheio, bem como nosso sistema de produção de energia, largamente dependente de usinas hidrelétricas.
Escassez de água e de comida, num mundo com vastos territórios tornados inabitáveis, implica, com toda a probabilidade, na multiplicação de conflitos, ligados a grandes ondas migratórias e disputas por recursos escassos. Não há, portanto, exagero em imaginarmos um possível cenário de um futuro desolador de guerras detonadas pela catástrofe climática.
Para escapar a essa grande tragédia de um mundo em colapso, é preciso - insisto mais uma vez, encarar a realidade de frente. Em primeiro lugar, ainda há tempo de desencadearmos uma revolução socioambiental para evitarmos os piores cenários. Isso começa por entendermos as causas dos desastres que testemunhamos cada vez mais frequentemente - o que nos remete ao predatório modo de vida capitalista. A seguir, é urgente nos organizarmos à altura da ameaça existencial. Isso significa cooperação em larga escala orientada pela ciência e pela consciência ecológica para revertermos o rumo catastrófico atual. Finalmente, de todo modo, a lógica da cooperação é a única saída para que a humanidade encontre as melhores formas de se adaptar ao mundo que virá, ainda que venha a se tornar crescentemente hostil à vida.
Para saber mais, recomendo:
BARRETO, Eduardo Sá. O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
_______. Ecologia marxista para pessoas sem tempo. São Paulo: Usina Editorial, 2022.
BONNEUIL, Christophe e FRESSOZ, Jean-Baptiste. L’événement Anthropocène : la Terre, l’histoire et nous. Paris: Éditions du Seuil, 2016.
MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.
_______. O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Editora Elefante, 2023.
WALLACE-WELLS, David. A terra inabitável: uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Canal no YouTube: O que você faria se soubesse o que eu sei? sob o comando do prof. Alexandre Araújo Costa.
Canção Para onde vamos, Carlos Rennó (Clip oficial no YouTube: https://www.youtube.com/watch?v=XnkFhHgQf1o)
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