Ana Paula Alves Fernandes, ao retirar três décimos pelo uso excessivo de termos iorubanos da Unidos de Padre Miguel (UPM), revela uma total incompreensão do contexto cultural e histórico do carnaval. O samba-enredo, que narra o retorno à Bahia e a ligação com Xangô, carrega em si as raízes de uma tradição negra, fundamentada no legado da diáspora africana e nas crenças dos povos de origem iorubana, pilares da cultura afro-brasileira. Quando a jurada questiona a utilização de termos como “Vou voltar, Bahia, até Xangô” e aponta a falta de inovação na melodia, ela faz isso com um olhar distante, que nega as especificidades da ancestralidade e da simbologia que permeiam o samba-enredo.

O carnaval é, antes de tudo, uma celebração do povo preto. Ele nasce da resistência, da luta e da riqueza cultural dos negros, que não apenas sobreviveram ao processo colonial, mas também se reinventaram e moldaram a cultura popular brasileira. Cada passo, cada batida, cada palavra no samba-enredo carrega um peso histórico que não pode ser reduzido a uma visão superficial, distante da verdade. A linguagem iorubana, em especial, é um elo vital entre o Brasil e a África, e uma das expressões mais poderosas da resistência cultural.
Quem é a jurada que desconhece o contexto cultural e histórico do carnaval?
A protagonista do erro gravíssimo, Ana Paula Alves Fernandes, não é nenhuma novata no mundo da cultura popular. Professora de pós-doutorado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ela possui um currículo extenso em pesquisas sobre samba e manifestações culturais brasileiras.

Formada na França, ela desenvolveu trabalhos sobre o bumba-meu-boi do Maranhão e até estudou a influência do samba na Europa. Além disso, participou de produções ligadas a escolas de samba em Paris.
Mas currículo extenso garante competência como jurada? Essa é a pergunta que muitos sambistas estão fazendo. A função de jurado do Carnaval exige conhecimento, rapidez, técnica e total atenção à apresentação. Se a jurada não é capacitada o suficiente e cometeu um erro crasso, isso compromete a credibilidade do julgamento.
O Erro de Julgar Aquilo que Não se Conhece
Julgar algo que se desconhece é, no mínimo, desrespeitoso. A visão limitada da jurada sobre a riqueza do samba, ao afirmar que o enredo é confuso e a melodia não traz inovação, ignora os elementos essenciais que tornam o carnaval uma festa única. O desfile não é apenas uma competição, mas uma forma de expressar o sentimento de pertencimento de um povo que, por séculos, teve sua história silenciada. O samba-enredo, mais do que um mero critério técnico, é uma manifestação cultural profunda e complexa, que não deve ser analisada sob o prisma simplista da "inovação" ou da "facilidade" de compreensão. O carnaval, com suas raízes na luta e na resistência, exige um olhar mais atento, respeitoso e, acima de tudo, empático.

A Falta de Reconhecimento da Tradição Iorubana
A crítica feita pela jurada reflete um distanciamento da verdade histórica e cultural que define o carnaval. A riqueza da tradição iorubana, presente no samba-enredo, não é um "excesso" de termos exóticos ou difíceis de entender, mas sim uma linguagem essencial que fortalece a identidade do povo negro. O carnaval é o espaço onde o povo preto se expressa e se celebra, e é preciso que todos os envolvidos, especialmente os jurados, tenham o respeito necessário para compreender e valorizar essa história.
A Formação Acadêmica Não é Sinônimo de Conhecimento
Os bancos acadêmicos, embora fundamentais para a formação profissional, não garantem, por si só, a capacidade de julgar conteúdos que ultrapassam os limites do conhecimento tradicional. A academia forma especialistas em diversas áreas, mas o verdadeiro entendimento cultural, especialmente de manifestações que não estão amplamente inseridas no currículo oficial, exige mais do que teoria. No caso do samba-enredo e suas raízes iorubanas, não basta uma formação acadêmica; é necessário vivência e conexão com a cultura que se propõe a avaliar.

O Risco da Elitização do Carnaval
O julgamento de um conteúdo cultural requer sensibilidade, vivência e respeito pela diversidade. Quando se trata de manifestações culturais negras, como o samba e as tradições afro-brasileiras, o entendimento precisa ir além da teoria acadêmica e abraçar a prática, a vivência e o contexto histórico do povo que constrói essa cultura. O carnaval, uma festa originalmente popular, corre o risco de ser esvaziado de sua essência ao ser filtrado por um olhar elitista e desconectado da realidade das comunidades que o fazem acontecer.

Para Julgar é Preciso Respeito e Conhecimento
O verdadeiro conhecimento cultural e a capacidade de analisar profundamente o samba-enredo envolvem reconhecer suas referências, compreender suas camadas simbólicas e captar o impacto emocional e histórico que carrega. Isso não se aprende apenas nos bancos escolares, mas sim através da experiência e do contato direto com aqueles que vivem e respiram essa cultura. O carnaval exige que seus jurados possuam mais do que um diploma; é necessário sensibilidade, escuta ativa e, acima de tudo, respeito pela história que se está julgando.
O Apagamento da Cultura Negra e o Risco da Gourmetização do Carnaval
Ana Paula, em seu posto de jurada da LIESA, expõe uma falha estrutural muito maior: o apagamento sistemático da cultura negra por um sistema educacional que nunca se preocupou em ensinar a verdadeira história do Brasil. O desconhecimento da língua iorubana não é um problema do samba-enredo; é um reflexo direto da falência do ensino brasileiro, que ignora deliberadamente as raízes africanas que formam nossa identidade. Não é à toa que a branquitude, sempre ocupando os postos de poder, se sente confortável em julgar aquilo que não entende, sem sequer ter a humildade de reconhecer sua ignorância.
A Elitização do Carnaval e a Exclusão do Povo Preto
O Brasil tem um histórico de elitização e apropriação cultural, e o carnaval está correndo um sério risco de ser gourmetizado por aqueles que nunca precisaram viver a realidade do barracão, do ensaio na comunidade, da resistência cultural contra um sistema que marginaliza o povo preto. A festa popular, construída nas vielas e nos quintais dos terreiros, está sendo moldada por uma classe que quer a transformar em espetáculo para gringo ver, diluindo sua essência e apagando o protagonismo dos verdadeiros fazedores do carnaval: o povo pobre e preto.

A Falha do Sistema Educacional e o Controle da Cultura Popular
A falha do sistema educacional brasileiro não é acidental. Ela é uma engrenagem bem lubrificada que serve para manter as classes dominantes no controle, enquanto a base da sociedade – quem faz o carnaval acontecer de fato na avenida – segue sendo explorada, silenciada e criminalizada. Essa mesma elite que não sabe diferenciar um atabaque de uma caixa de som se apropria da cultura negra para vender ingressos caros, enquanto corta o financiamento das escolas de samba e empurra a comunidade para as margens, negando acesso, espaço e voz.
UPM: O Carnaval Como Resistência
O que aconteceu com a Unidos de Padre Miguel não é um episódio isolado. É parte de um processo maior de tentativa de deslegitimação do conhecimento popular e da cultura negra. A branquitude, sem argumentos, se apoia no academicismo vazio para justificar seu despreparo. Mas o samba é resistência. E enquanto houver povo preto na avenida, o carnaval seguirá sendo nosso.
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