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OPINIÃO | Jurada Faz Justificativa Rasa e Inapropriada ao retirar décimos da UPM

Ana Soáres

Ana Paula Alves Fernandes, ao retirar três décimos pelo uso excessivo de termos iorubanos da Unidos de Padre Miguel (UPM), revela uma total incompreensão do contexto cultural e histórico do carnaval. O samba-enredo, que narra o retorno à Bahia e a ligação com Xangô, carrega em si as raízes de uma tradição negra, fundamentada no legado da diáspora africana e nas crenças dos povos de origem iorubana, pilares da cultura afro-brasileira. Quando a jurada questiona a utilização de termos como “Vou voltar, Bahia, até Xangô” e aponta a falta de inovação na melodia, ela faz isso com um olhar distante, que nega as especificidades da ancestralidade e da simbologia que permeiam o samba-enredo.

Jurada Faz Justificativa Rasa e Inapropriada
Justificativas da jurada Ana Paula Alves Fernandes, ao retirar três décimos da G.R.E.S. Unidos de Padre Miguel - Reprodução

O carnaval é, antes de tudo, uma celebração do povo preto. Ele nasce da resistência, da luta e da riqueza cultural dos negros, que não apenas sobreviveram ao processo colonial, mas também se reinventaram e moldaram a cultura popular brasileira. Cada passo, cada batida, cada palavra no samba-enredo carrega um peso histórico que não pode ser reduzido a uma visão superficial, distante da verdade. A linguagem iorubana, em especial, é um elo vital entre o Brasil e a África, e uma das expressões mais poderosas da resistência cultural.

Quem é a jurada que desconhece o contexto cultural e histórico do carnaval?

A protagonista do erro gravíssimo, Ana Paula Alves Fernandes, não é nenhuma novata no mundo da cultura popular. Professora de pós-doutorado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), ela possui um currículo extenso em pesquisas sobre samba e manifestações culturais brasileiras.

Jurada Faz Justificativa Rasa e Inapropriada
Unidos de Padre Miguel - Carnaval 2025 – Créditos: Eduardo Hollanda

Formada na França, ela desenvolveu trabalhos sobre o bumba-meu-boi do Maranhão e até estudou a influência do samba na Europa. Além disso, participou de produções ligadas a escolas de samba em Paris.

Mas currículo extenso garante competência como jurada? Essa é a pergunta que muitos sambistas estão fazendo. A função de jurado do Carnaval exige conhecimento, rapidez, técnica e total atenção à apresentação. Se a jurada não é capacitada o suficiente e cometeu um erro crasso, isso compromete a credibilidade do julgamento.

O Erro de Julgar Aquilo que Não se Conhece

Julgar algo que se desconhece é, no mínimo, desrespeitoso. A visão limitada da jurada sobre a riqueza do samba, ao afirmar que o enredo é confuso e a melodia não traz inovação, ignora os elementos essenciais que tornam o carnaval uma festa única. O desfile não é apenas uma competição, mas uma forma de expressar o sentimento de pertencimento de um povo que, por séculos, teve sua história silenciada. O samba-enredo, mais do que um mero critério técnico, é uma manifestação cultural profunda e complexa, que não deve ser analisada sob o prisma simplista da "inovação" ou da "facilidade" de compreensão. O carnaval, com suas raízes na luta e na resistência, exige um olhar mais atento, respeitoso e, acima de tudo, empático.


Jurada Faz Justificativa Rasa e Inapropriada
Unidos de Padre Miguel - Carnaval 2025 – Reprodução/Instagram @lilo.oliveira_

A Falta de Reconhecimento da Tradição Iorubana

A crítica feita pela jurada reflete um distanciamento da verdade histórica e cultural que define o carnaval. A riqueza da tradição iorubana, presente no samba-enredo, não é um "excesso" de termos exóticos ou difíceis de entender, mas sim uma linguagem essencial que fortalece a identidade do povo negro. O carnaval é o espaço onde o povo preto se expressa e se celebra, e é preciso que todos os envolvidos, especialmente os jurados, tenham o respeito necessário para compreender e valorizar essa história.

A Formação Acadêmica Não é Sinônimo de Conhecimento

Os bancos acadêmicos, embora fundamentais para a formação profissional, não garantem, por si só, a capacidade de julgar conteúdos que ultrapassam os limites do conhecimento tradicional. A academia forma especialistas em diversas áreas, mas o verdadeiro entendimento cultural, especialmente de manifestações que não estão amplamente inseridas no currículo oficial, exige mais do que teoria. No caso do samba-enredo e suas raízes iorubanas, não basta uma formação acadêmica; é necessário vivência e conexão com a cultura que se propõe a avaliar.

Jurada Faz Justificativa Rasa e Inapropriada
Unidos de Padre Miguel - Carnaval 2025 – Reprodução/Instagram @lilo.oliveira_

O Risco da Elitização do Carnaval

O julgamento de um conteúdo cultural requer sensibilidade, vivência e respeito pela diversidade. Quando se trata de manifestações culturais negras, como o samba e as tradições afro-brasileiras, o entendimento precisa ir além da teoria acadêmica e abraçar a prática, a vivência e o contexto histórico do povo que constrói essa cultura. O carnaval, uma festa originalmente popular, corre o risco de ser esvaziado de sua essência ao ser filtrado por um olhar elitista e desconectado da realidade das comunidades que o fazem acontecer.

Nota Oficial UPM
Unidos de Padre Miguel - Carnaval 2025 – Reprodução/Instagram @unidosdepadremiguel

Para Julgar é Preciso Respeito e Conhecimento

O verdadeiro conhecimento cultural e a capacidade de analisar profundamente o samba-enredo envolvem reconhecer suas referências, compreender suas camadas simbólicas e captar o impacto emocional e histórico que carrega. Isso não se aprende apenas nos bancos escolares, mas sim através da experiência e do contato direto com aqueles que vivem e respiram essa cultura. O carnaval exige que seus jurados possuam mais do que um diploma; é necessário sensibilidade, escuta ativa e, acima de tudo, respeito pela história que se está julgando.

O Apagamento da Cultura Negra e o Risco da Gourmetização do Carnaval

Ana Paula, em seu posto de jurada da LIESA, expõe uma falha estrutural muito maior: o apagamento sistemático da cultura negra por um sistema educacional que nunca se preocupou em ensinar a verdadeira história do Brasil. O desconhecimento da língua iorubana não é um problema do samba-enredo; é um reflexo direto da falência do ensino brasileiro, que ignora deliberadamente as raízes africanas que formam nossa identidade. Não é à toa que a branquitude, sempre ocupando os postos de poder, se sente confortável em julgar aquilo que não entende, sem sequer ter a humildade de reconhecer sua ignorância.

A Elitização do Carnaval e a Exclusão do Povo Preto

O Brasil tem um histórico de elitização e apropriação cultural, e o carnaval está correndo um sério risco de ser gourmetizado por aqueles que nunca precisaram viver a realidade do barracão, do ensaio na comunidade, da resistência cultural contra um sistema que marginaliza o povo preto. A festa popular, construída nas vielas e nos quintais dos terreiros, está sendo moldada por uma classe que quer a transformar em espetáculo para gringo ver, diluindo sua essência e apagando o protagonismo dos verdadeiros fazedores do carnaval: o povo pobre e preto.

Nota Oficial UPM
Unidos de Padre Miguel - Carnaval 2025 – Reprodução/Instagram @unidosdepadremiguel

A Falha do Sistema Educacional e o Controle da Cultura Popular

A falha do sistema educacional brasileiro não é acidental. Ela é uma engrenagem bem lubrificada que serve para manter as classes dominantes no controle, enquanto a base da sociedade – quem faz o carnaval acontecer de fato na avenida – segue sendo explorada, silenciada e criminalizada. Essa mesma elite que não sabe diferenciar um atabaque de uma caixa de som se apropria da cultura negra para vender ingressos caros, enquanto corta o financiamento das escolas de samba e empurra a comunidade para as margens, negando acesso, espaço e voz.

UPM: O Carnaval Como Resistência

O que aconteceu com a Unidos de Padre Miguel não é um episódio isolado. É parte de um processo maior de tentativa de deslegitimação do conhecimento popular e da cultura negra. A branquitude, sem argumentos, se apoia no academicismo vazio para justificar seu despreparo. Mas o samba é resistência. E enquanto houver povo preto na avenida, o carnaval seguirá sendo nosso.


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