E a genialidade de Fernanda Torres em seu ofício da arte performática
Na noite de 03 de março, o filme brasileiro "Ainda Estou Aqui" ganhou o Oscar de Melhor Filme Internacional. Na ocasião, a atriz Fernanda Torres concorreu ao prêmio de Melhor Atriz. Decidi escrever sobre esse acontecimento pela perspectiva de uma atriz de teatro de rua e artista do ofício do cotidiano sensível. A constatação que me veio ontem, após ver Fernanda Torres no tapete vermelho do Oscar em um vestido Chanel desfilado na última semana de alta-costura: da performance surrealista, em entrevista com o Jô, em que secadores de cabelo ganham vida à rodadinha de um Chanel de alta-costura no tapete vermelho do Oscar, mostrando que, afinal, é apenas um vestido, Fernanda nos proporciona a esperança no ofício da arte.
Acompanhei, durante os últimos meses, a campanha para o prêmio com foco na atriz porque entendi a genialidade da sua arte revendo a série "Os Normais", algumas entrevistas e conteúdos nas redes sociais. A meta é estudar suas obras profundamente. Além de achar incrível sua preocupação com a moda, na escolha dos looks usados em todos os eventos. Como atriz em treinamento, entendi o poder sutil e subversivo do humor, aí está minha admiração máxima em Fernanda Torres, além de sua sinceridade visceral e despretensiosa.
Na performance a que me refiro, em entrevista com o Jô Soares, ela conta sobre o terror que é ter que escovar os cabelos com secador, dizendo que a sua diária é cobrada pelo uso do objeto e conta como se prepara para a tortura. Genialmente, traz um objeto do cotidiano para o centro da cena, dando-lhe vida, som e movimento, performando como secador, em uma comédia corporal. Agora, sobre a rodadinha no vestido Chanel de alta-costura: no tapete vermelho, aproveita da textura da saia em penas para trazer movimento às fotos. O que eu vi foi um ato simbólico mais profundo. Claro, pode não ter sido consciente e premeditado, já que falamos sobre uma performance artística; e, como diz Shakespeare, nós, atores, devemos ser um espelho da natureza, refletir a natureza dos conteúdos inconscientes, inclusive. Acho simbólico uma atriz brasileira, em parceria com uma das maiores casas de moda do mundo, usar este vestido direto da passarela e conferir-lhe o movimento da cultura do Brasil de dança, tato e humor. O vestido não é o objeto intocável do divino que nos é vendido, mas é, ali, um objeto a serviço do movimento do corpo. Quando pensamos em tapetes vermelhos e met gala, essa noção simbólica é muito importante.
Para a cultura brasileira, como instituição, ganhar um prêmio por um filme contando a história dos horrores do regime ditatorial em uma linguagem sensível e amorosa, em tempos de movimentos reacionários perigosos, em um país assumidamente fascista na figura de um ex-presidente, é de extremo orgulho sul-americano. Aliás, outra coincidência, que espero ter sido intencional, é a atriz indicada por atuação em filme retratando a ditatura e, por isso, de extrema importância política, usar o vestido da maison fundada por Coco Chanel, uma possível colaboradora do movimento nazista.
O Oscar de Melhor Atriz não veio. Há quem diga que foi dado a uma jovem atriz padrão norte-americana em início de carreira por um filme romantizando a prostituição e a hipersexualização de corpos femininos pelo patriarcado como contenção de danos para agradar os compatriotas. O que posso afirmar é que, para nós, Fernanda Torres, o diretor Walter Salles e todo o elenco de "Ainda Estou Aqui" ganharam muito mais do que o reconhecimento internacional de um ótimo filme. Tivemos nossa história contada de forma sensível através da perspectiva de uma família de importância política para que nunca esqueçamos. Jamais repetir os erros de ceder ao neocolonialismo norte-americano e europeu.
Renata Freitas
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