Nesse último carnaval, Baby do Brasil e Ivete Sangalo protagonizaram um embate sobre o apocalipse. De um lado, a enunciação do fim iminente, do outro a declaração confiante de sua anulação por força da vontade. Claro, a linguagem e o contexto envolviam o desejo de domínio de uma vertente teológica neopentecostal e, no outro campo, a ânsia de uma retomada de controle da situação por meio de palavras reconfortantes aderentes ao espírito festivo carnavalesco.
A reação de boa parte da esquerda foi um misto de ridicularização ao extravagante e de crítica ao ímpeto invasivo e agressivo da estratégia de conquista religiosa utilizada por Baby. Embora seja necessário marcar posição contra tal estratégia, creio que algo ainda mais importante se perdeu. Eu me refiro ao reconhecimento do espírito do nosso tempo e da base objetiva que lhe suporta, a fim de disputar sua interpretação e imprimir a reação de que precisamos com urgência máxima.
Como se trata de meu primeiro texto nesta revista, gostaria de explicitar de onde falo e com qual propósito. Historiador de formação, acostumado a pesquisar um tanto obsessivamente sobre tudo o que me interessa e me considerando alguém razoavelmente bem informado sobre os graves problemas do nosso tempo, ainda assim fui surpreendido de maneira arrasadora há cerca de cinco anos. Minha avassaladora descoberta foi a gravidade da emergência climática. Sim, como quase todo mundo, eu já ouvia falar desde criança em aquecimento global. Tinha ainda, como historiador e cientista social de esquerda, alguma noção acerca de debates sobre decrescimento ou sobre fratura metabólica, tal como havia aprendido com o ecossocialismo de Michael Löwy. Mas – e isso muda tudo - eu não tinha ideia da escala, da profundidade e da iminente proximidade da catástrofe climática. Senti-me envergonhado pela minha profunda ignorância e depressivo com o sentimento de esmagamento, de impotência diante de algo tão devastador.
Comecei lendo a obra premiada Capitalismo e colapso ambiental, do professor Luiz Marques. Além do monumental impacto causado pela obra, fiquei impressionado pelo fato de que ele, que fora meu professor numa disciplina de história da arte na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) se “convertera”, em poucos anos, de grande especialista nessa temática, em reconhecido divulgador científico sobre emergência climática e devastação ambiental. Penso que o seu exemplo deva nos contagiar.
Não venho aqui escrever, portanto, como alguém com bagagem de ativista ambiental ou de cientista especialista em clima, biodiversidade e áreas afins. Quero comunicar informação de maneira sintética e compartilhar reflexões no mesmo passo em que, ao fazê-lo, exemplifico a necessidade de que tais questões deixem de ser tópicos de especialistas ou de ativistas de longa data. É decisivo para nossa sobrevivência que cada um de nós se aproprie de um entendimento básico sobre o que está acontecendo com as condições de sustentação da vida na Terra.
É difícil encontrar adjetivos adequados para falar a respeito disso com o devido tom de gravidade. Vou tentar começando com uma longa citação do best-seller A terra inabitável: uma história do futuro, do jornalista David Wallace-Wells:
“É pior, muito pior do que você imagina. A lentidão da mudança climática é um conto de fadas, talvez tão pernicioso quanto aquele que afirma que ela não existe, e chega a nós em um pacote com vários outros, numa antologia de ilusões reconfortantes: a de que o aquecimento global é uma saga ártica, que se desenrola num lugar remoto; de que é estritamente uma questão de nível do mar e litorais, não uma crise abrangente que afeta cada canto do globo, cada ser vivo; de que se trata de uma crise do mundo “natural”, não do humano; de que as duas coisas são diferentes e vivemos hoje de algum modo alijados, acima ou no mínimo protegidos da natureza, não inescapavelmente dentro dela e literalmente sujeitados a ela; de que a riqueza pode ser um escudo contra as devastações do aquecimento. De que a queima de combustíveis fósseis é o preço do crescimento econômico contínuo; de que o crescimento e a tecnologia que ele gera nos propiciarão a engenharia necessária para escapar do desastre ambiental; de que há algum análogo dessa ameaça, em escala ou escopo, no longo arco da história humana, capaz de nos deixar confiantes de que sairemos vitoriosos dessa nossa mediação de forças com ela. Nada disso é verdade.”
Há pelo menos cerca de três décadas existe conhecimento científico muito robusto sobre o caráter antropogênico (isto é, de causa humana) do aquecimento global e sobre sua gravidade. Conhecimento colocado ao alcance do público, dos governantes e de todos os atores econômicos que concentram poder em nosso planeta. Mas, acordo após acordo nas esferas de negociação global, as conferências do clima, não estamos nem perto de desviarmos da rota suicida na qual estamos presos, como civilização e como humanidade. E não é que as emissões de gases de efeito estufa não estejam diminuindo na velocidade requerida. Globalmente, elas sequer estão diminuindo. Na verdade, seguem aumentando, ano após ano e, pasmem, em velocidade crescente.
O atual patamar de concentração de gases de efeito estufa na atmosfera é equivalente ao de cerca de 3 a 5 milhões de anos atrás, quando os oceanos eram 15 a 20 metros mais elevados e as temperaturas eram cerca de 2 a 3 graus mais quentes que o nível pré-industrial. Mas ainda pode piorar muito. Estamos no rumo de um aquecimento que tornará largas faixas do planeta inabitáveis, seja por ondas de calor letais, seja por impossibilidade de sustentar agricultura ou ainda por elevação do nível do mar.
Fala-se muito em transição energética. As chamadas fontes de energia renováveis, se confiarmos em discursos institucionais e empresariais reconfortantes (tais como as palavras de Ivete), irão nos salvar. Só que não. Pelo menos não por mera adição. Nosso modo de vida capitalista é grotescamente “energívoro”. Nos atuais padrões de produção e consumo, não há a menor chance de transição energética. Aliás, nunca houve transição energética na História. Sempre houve adição complementar e articulada. A história real é biomassa + carvão + petróleo + nuclear + hidrelétrica + eólica + solar. Em números absolutos, nenhuma fonte diminui, só aumenta. Devoramos o mundo mineral e os combustíveis fósseis numa escala colossal. As renováveis, infelizmente, não chegarão nem perto de fazer o milagre prometido. Para ter uma noção de escala: se tivéssemos de contar, hoje, apenas com a energia renovável disponível, nosso nível de consumo de energia per capita seria equivalente ao padrão pré-industrial. A frenagem da locomotiva fóssil que carrega a humanidade para o abismo implica, portanto, a desmontagem disruptiva de todo o sistema produtivo global.
A única saída é revolucionária. Na verdade, apenas o começo da possibilidade de uma saída, ainda carregada de imensos riscos, inclusive existenciais. Nos próximos textos, pretendo deixar claro o porquê de tão grave conclusão.
Por ora, fica apenas o alerta: de nada vai adiantar ridicularizar a linguagem religiosa que reveste temores reais. Ainda que lideranças de extrema-direita e vis oportunistas se utilizem de linguagem apocalíptica para angariar fiéis e votos, o espírito do nosso tempo é, com justa razão, o de fim do mundo. Fim do nosso mundo – das condições de habitabilidade para a nossa espécie e para quase todas as demais. Reconhecer esse risco real e crescente é apenas o primeiro passo para a luta hercúlea que devemos travar.
Para saber mais, recomendo:
BARRETO, Eduardo Sá. O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
_______. Ecologia marxista para pessoas sem tempo. São Paulo: Usina Editorial, 2022.
BONNEUIL, Christophe e FRESSOZ, Jean-Baptiste. L’événement Anthropocène: la Terre, l’histoire et nous. Paris: Éditions du Seuil, 2016.
MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.
_______. O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Editora Elefante, 2023.
WALLACE-WELLS, David. A terra inabitável: uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Canal no YouTube: O que você faria se soubesse o que eu sei? Sob o comando do prof. Alexandre Araújo Costa.
Sinuê Neckel Miguel
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