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Ana Soáres

O Empreendedorismo do Corre: A Roda Viciada que Alimenta a Pobreza e o Lucro Estatal

Atualizado: 24 de out.


Mulheres negras vendendo café

O Brasil é um país que vende a narrativa do "empreendedor nato", aquele que acorda cedo, arregaça as mangas e "faz acontecer". O que não é dito, e o que precisa ser escancarado, é que essa narrativa só faz sentido para quem tem opção. Para milhões de brasileiras, em sua maioria mulheres pretas, mães solo e periféricas, o empreendedorismo não é um caminho escolhido por vocação ou paixão, mas sim um imperativo cruel. Elas não estão "fazendo acontecer" por gosto, mas por desespero. Elas fazem parte do empreendedorismo do corre, ou, como também tem sido chamado, a sevirologia – a ciência de se virar a qualquer custo, na ausência de alternativas reais. E o governo? O governo, esse mesmo que deveria garantir o mínimo de dignidade, assiste de camarote e lucra com esse modelo.

O Círculo da Pobreza: Ganho Hoje, Sobrevivo Amanhã

Para entender o que está em jogo, é preciso encarar o ciclo perverso que sustenta esse empreendedorismo de sobrevivência. Estamos falando de mulheres que, ao contrário dos grandes empreendedores celebrados em capas de revistas, não têm capital inicial, nem acesso a crédito ou financiamento. Elas não têm tempo para pensar em "estratégia de marketing" ou "posicionamento de marca". O foco é outro: ganhar hoje para comer amanhã.

Essa é a realidade de milhões de brasileiras que, impedidas de acessar o mercado formal de trabalho, veem no corre – vender quentinhas, cosméticos, roupas usadas, fazer faxinas ou trabalhos temporários – a única forma de garantir o sustento dos filhos. Elas fazem malabarismos diários com uma agenda extenuante, dividindo o tempo entre cuidar da casa, dos filhos, e tentar ganhar o mínimo necessário para a sobrevivência da família. Isso não é empreendedorismo; é sobrevivência nua e crua.

Esse ciclo vicioso aprisiona essas mulheres num formato onde não há crescimento real. Hoje elas fazem bicos, vendem coisas, encontram formas de garantir a refeição do dia, mas sem a segurança de direitos trabalhistas, sem aposentadoria e sem perspectivas. Amanhã? Amanhã elas estarão no mesmo lugar, recomeçando do zero.

Sevirologia: A Ciência de Se Virar em um Sistema Desigual

A sevirologia não é uma escolha, é uma necessidade. E é preciso deixar claro: o Estado não apenas negligencia essa realidade, como se beneficia dela. Enquanto essas mulheres estão ocupadas correndo atrás do sustento básico, o governo evita encarar a urgência de criar condições reais de inclusão no mercado de trabalho formal. A economia informal, alimentada pelo corre, funciona como uma espécie de válvula de escape que impede explosões sociais mais graves. No entanto, é essa mesma economia que perpetua a pobreza e a desigualdade.

O Brasil tem milhões de trabalhadores informais. O governo sabe que, se formalizasse todos esses trabalhadores, teria de enfrentar o desafio de fornecer direitos trabalhistas e previdenciários. E isso custa. O que é mais barato e conveniente? Incentivar esse empreendedorismo de sobrevivência como "solução", sem resolver o problema estrutural. Assim, o Estado se exime de suas responsabilidades, e as mulheres pretas e periféricas pagam o preço, carregando nas costas a ilusão de que estão "empreendendo".

Mulheres Pretas, Mães Solo: A Espinha Dorsal do Corre

Essas mulheres são o coração do corre. São elas que, impedidas de entrar no mercado de trabalho formal, encontram no informal uma maneira de sobreviver. E não se engane: o mercado formal não está fechado para elas por falta de capacidade ou competência. Está fechado por barreiras estruturais – raciais, de gênero e econômicas – que as mantêm do lado de fora.

Mães solo têm uma carga dobrada. São responsáveis não só pelo sustento da casa, mas também pelo cuidado dos filhos, e muitas vezes sem qualquer apoio do Estado, seja em creches ou em políticas públicas que as permitam ter uma vida profissional estável. O racismo e o sexismo estruturais agravam essa situação. Mulheres negras são mais afetadas pelo desemprego, recebem salários mais baixos e enfrentam discriminações adicionais no mercado de trabalho. Quando elas buscam um emprego formal, encontram portas fechadas. Quando buscam auxílio do governo, recebem promessas vazias.

O "corre" se torna, então, a única alternativa, e a precariedade é a regra. Ao contrário do empreendedorismo formal, com possibilidade de crescimento, planejamento e estrutura, o corre dessas mulheres está sujeito à imprevisibilidade. Elas dependem do dia a dia, do humor da economia, da demanda local, de clientes que, muitas vezes, também estão apertados.

Como o Governo Alimenta o Círculo de Pobreza

O governo enxerga a informalidade e o empreendedorismo de sobrevivência como uma solução conveniente para não lidar com o real problema: a falta de emprego formal e qualificado, especialmente para as classes mais vulneráveis. Quando o Estado promove o Microempreendedor Individual (MEI) como solução mágica para o desemprego, está na verdade jogando um problema muito mais complexo para debaixo do tapete.

O MEI não oferece segurança a longo prazo. Sim, ele formaliza parte desses trabalhadores informais e concede acesso a benefícios mínimos, como contribuição previdenciária. No entanto, o MEI não resolve a questão central: a precariedade das condições de trabalho. A maior parte dessas mulheres, ao se tornarem MEIs, continuam presas ao corre, sem garantias reais de renda estável. Enquanto o governo ganha ao mostrar números de formalização, a realidade dessas empreendedoras segue a mesma – a luta diária pela sobrevivência.

E qual é o grande benefício para o governo? A redução da pressão sobre o Estado. Ao deixar que essas mulheres "se virem", o governo evita implementar políticas públicas robustas que demandariam investimentos pesados, como a criação de creches em larga escala, programas de capacitação profissional, ou incentivos reais para a inclusão dessas mulheres no mercado de trabalho formal.

O Verdadeiro Preço do Empreendedorismo do Corre por Sobrevivência

Enquanto o governo finge que o empreendedorismo é uma solução, a realidade é que a precariedade do corre tem um custo altíssimo para essas mulheres. Sem garantias trabalhistas, elas não têm proteção contra doenças, acidentes de trabalho ou gravidez. Sem uma renda fixa, o acesso ao crédito formal é limitado, o que impede qualquer tipo de planejamento de longo prazo, seja para o próprio negócio ou para a educação dos filhos.

As estatísticas são claras: mais de 60% das mães solo no Brasil são mulheres negras e a grande maioria delas está no mercado informal. Sem creches públicas e com a responsabilidade integral pelos filhos, essas mulheres não conseguem sequer se qualificar ou buscar melhores oportunidades. Ficam presas em uma rotina de corre que as impede de avançar socialmente.

O Futuro: O Que Precisa Mudar

O empreendedorismo de sobrevivência é uma armadilha que perpetua a pobreza, e essa roda precisa parar de girar. Para isso, é necessário que o Estado encare sua responsabilidade. Precisamos de políticas públicas que garantam o acesso ao emprego formal para essas mulheres, com investimento em educação, capacitação profissional e, principalmente, na criação de uma rede de apoio real – creches, escolas integrais, e assistência social efetiva.

Não podemos continuar a romantizar o corre como uma solução. Ele é um sintoma de um problema estrutural profundo que precisa ser enfrentado com seriedade. E não adianta fingir que o empreendedorismo informal é um caminho de ascensão social, porque para essas mulheres, ele é apenas a continuação da luta por sobrevivência.

O Brasil precisa parar de usar o trabalho informal como solução de curto prazo para problemas que exigem mudanças profundas e estruturais. O governo, as empresas e a sociedade precisam repensar suas prioridades e parar de se beneficiar da exploração da força de trabalho dessas mulheres. O corre não pode ser a resposta – e, enquanto for, o ciclo de pobreza vai continuar girando. Para elas, para seus filhos, e para as futuras gerações.

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