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Marco Buchmann

O direito ao prazer na diferença por Cris Muñoz

Atualizado: 29 de dez. de 2023

Foto: Cris Muñoz - Créditos: Mariana Pereira


Cris Muñoz é uma mulher autista de nível 1 de suporte, tem TDAH, altas habilidades/ superdotação. É mãe da Sophia, uma adolescente de 16 anos, linda, amorosa, alegre e também autista.

Palhaça integrante de Palhaços Sem Fronteiras Brasil, professora do IIP ( Instituto Internacional de Psicanálise), colaboradora da IIAN ( Internacional Inclusive Arts Network) e colunista da Revista Pàhnorama, onde escreve sobre Acessibilidade Cultural. Faz pós-doutorado na UNIRIO, onde estuda cuidados artísticos para pessoas neurodivergentes em situação de vulnerabilidade.



O longa-metragem Assexybilidade de Daniel Gonçalves, que teve sua estreia no Festival do Rio nos dias 7 e 8 de outubro no Cine Odeon, tradicional cinema do centro da cidade do Rio de Janeiro, levou os merecidos prêmios de melhor direção de documentário e menção honrosa no referido festival.


Como toda estreia, tem aquele burburinho formado pelo cheiro da pipoca que vem do carrinho de rua e compete com aquela outra que vende no cinema. Esta adornada por atrativos que vão desde a carrocinha vintage cheia de design ao copo com um desenho temático. O odor das duas pipocas é semelhante, mas mistura-se nos corredores apertados do Cine Odeon, onde pessoas circulam para ver o filme, ver outras pessoas e, ao mesmo tempo, serem vistas. 

Confesso que não costumo ter muito ânimo para tudo que envolve estreias, vernissage, première e coisas do tipo. O excesso de olhares, abraços e beijos e alguma intimidade forçada sempre me deixam incomodada, porém convivo desde sempre com o paradoxo de ser uma autista completamente deslumbrada pela espécie humana e seu comportamento, porém não suportar o excesso de estímulos sensoriais por longo tempo. Precisei aprender códigos sociais para não cometer tantas gafes como antes e ser algo menos que absolutamente sem noção em determinados contextos.

Bem, eu sabia que o longa-metragem de Daniel Gonçalves tratava de uma temática transgressora do senso comum por abordar a sexualidade de pessoas com deficiência, o que até hoje é um tabu. Peço perdão aqui se, sem qualquer preparação prévia, dessacralizei a imagem de pessoa com deficiência foi historicamente construída ao indiretamente afirmar que, sim, temos vida sexual. A vida é isso: surpresas. Nem sempre estamos preparados (ironia).


Temos desejos e “a gente não quer só comida, diversão e arte”, mesmo porque, estatisticamente temos menos acesso a tudo isso. 

O prazer é um direito, como qualquer outro, mas socialmente um acordo que envolve o desequilíbrio na distribuição de poder e, consequentemente, na formação de imagem e opinião cristalizou historicamente a identificação de corpos com deficiência com o que é bizarro, grotesco, feio, errado, monstruoso ou, em oposição, um corpo sagrado, ‘especial’, angelical, que veio à Terra ensinar a benevolência e a superação aos demais (momento para eu rir e voltar a escrever)”. Nas duas formas desumanizantes a equação dá o mesmo resultado: somos intocáveis, indesejáveis.


Assexybilidade faz exatamente um trocadilho no título, criando um neologismo de grande potência política e afetiva: acessibilidade na sexualidade. No filme documental conhecemos personagens reais que "espantosamente" para uma sociedade castradora e normativa, são felizes e plenas ao exercerem seus desejos, demonstrarem afetos e conversarem abertamente sobre medos, frustrações e vontade de amar, como qualquer pessoa. 

Ao desdobrar na tela, as nuances, subjetividades, incertezas e contradições de pessoas que no dia a dia são estigmatizados, o diretor literalmente desnuda sua humanidade e sua vontade e direito ao prazer.


Eu fui nervosa para ver o filme, sabia que sairia mexida. Imagino que quaisquer de nós saiamos, mas para uma mulher de cinquenta anos com deficiência, mãe solo de uma adolescente também autista, pode-se imaginar que a ideia da solidão é um fantasma que assombra com uma ‘concretude’ que não é típica dos espectros: a estatística. O "mercado dos amores líquidos" tem tornado as relações cada vez mais superficiais e as pessoas isoladas numa ideia de selfie que as aprisiona no individualismo. Nessa sociedade, pessoas e relações são bens de consumo e os encontros parecem mudar segundo as tendências Primavera/Verão e Outono/Inverno. Sob esse aspecto, o filme também tem êxito ao apresentar personagens reais em estado de desejo e/ou de amor que subvertem lógicas construídas. Talvez pela própria forma de experienciar a vida (fora de padrões) constrói sua sexualidade com base na liberdade de usufruir do prazer a partir de sua condição. Corpos porosos de gozo.


Foto: Cartaz- créditos: divulgação

Conversei com o diretor Daniel Gonçalves sobre o longa-meragem Assexybilidade:

 

 

Cris Muñoz-  Dentre tantos assuntos que figuram acerca da acessibilidade, em especial no Brasil - um país que tem a prática frequente do descumprimento de direitos básicos de pessoas com deficiência - por que você escolheu dar foco para a sexualidade deste grupo?

 

Daniel Gonçalves- Eu não pensei nisso na hora em que estava elaborando o filme, não  tive essa percepção, tipo "quero  falar sobre isso". A ideia do ( filme) Assexybilidade surgiu durante a montagem do "Meu nome é  Daniel" ( primeiro longa-metragem do diretor). Nesse filme há uma sequência  em que falo um pouco sobre minhas experiências afetivas e sexuais e então, durante o processo, eu e Vinicius Nascimento- que montou o filme comigo- tivemos a ideia de fazer um filme só sobre esse tema. Percebemos que não era algo muito falado, mas só  fui me dar conta do quão tabu era a questão da sexualidade de pessoas com deficiência, no último ano, durante o processo de gravação e edição do filme, entre 2021 e 2022. Fizemos vários  laboratórios durante o processo e então foi ficando cada vez mais claro o tamanho do tabu que era falar sobre esse assunto. Portanto, não foi algo que eu tivesse percebido previamente. Comecei a refletir sobre isso quando já estava fazendo o filme.

 

 

Cris Muñoz- No filme a questão da sexualidade vem muitas vezes ligada a construção da autoestima de um corpo que foge ao padrão vigente da ideia - também construída- de beleza. Como você vê esse processo subjetivo de construção da autoestima?

 

 

Daniel Gonçalves- Acho que a construção da minha autoestima veio, em grande parte, dos meus pais. Eles nunca me esconderam. Desde criança eu sempre estive em todos os lugares e ,quando ocorria alguma situação  em que  eu  sofria qualquer tipo de preconceito - naquela época nem existia a palavra capacitismo -, meus pais não "deixavam barato". Creio que essa atitude passou para mim. Lembro-me da primeira vez que respondi a um comentário capacitista com relação à minha condição: eu devia ter uns dez anos e estava passando pela varanda de um clube dentro de um condomínio onde minha família costumava tirar férias. Um casal me olhou e , enquanto eu passava, comentou: "coitadinho".  Respondi sem nem olhar para trás: "coitadinho é o caralho!" - e continuei andando. Depois, quando finalmente olhei para trás os dois pareciam estar muito chocados com a minha resposta.

Portanto, acho que essa não foi uma construção só  minha, mas também da minha  família, da maneira como eles lideram com a minha deficiência.

Com relação a minha vivência afetiva e a relacionamentos, tive uma experiência marcante na adolescência que conto em “Meu nome é Daniel”.

Eu gostava de uma garota, então escrevi um bilhete para ela porque sabia que nos veríamos numa festa de aniversário no fim de semana. Não lembro exatamente do bilhete, mas era algo assim: "eu quero ficar com você".

No dia da festa ela me chamou para conversar e aí eu ouvi pela primeira vez a frase que mais escutaria na minha adolescência: "somos só amigos." Com doze para treze anos eu "travei", achei que  ninguém ia querer ficar comigo por conta da minha deficiência. Demorei muito para entender que isso era uma besteira. Hoje, depois de passar por alguns relacionamentos- não mais sérios, porque isso eu só  tive o que eu tenho com a Dani e estamos juntos há quase oito anos- eu percebi que isso sempre  foi uma besteira.

 Hoje eu sei que se alguém tiver qualquer questão em relação a minha condição, não vai sequer se abrir para me conhecer. Talvez eu tivesse resolvido essa questão de forma mais tranquila se eu fizesse terapia, mas não  fiz.

Autoestima é sempre uma construção.

 

Cris Muñoz- A sexualidade também está ligada ao afeto por nós e pelo outro? Sob esse aspecto você considera que pessoas com deficiência teriam uma maior tendência a desenvolver amores platônicos?

 

 

Daniel Gonçalves- Não sei. Penso que todo mundo, tendo ou não  uma deficiência, pode desenvolver um amor platônico. Não acho que pessoas com deficiência tenham mais tendência a desenvolver amores platônicos. Comigo, isso talvez tenha acontecido  porque durante algum tempo, quando acontecia de eu me interessar por alguma garota, para não  sofrer uma rejeição devido a minha deficiência, eu tentava me aproximar, para que me conhecessem para além da deficiência. Mas, dessa forma, eu acabava gostando da pessoa mesmo antes de tomar qualquer iniciativa. Quando chegava a tentar alguma coisa já ouvia: "Somos só amigos."

Essa foi a minha experiência, mas não vejo isso como uma regra para qualquer pessoa com deficiência.

 

 

Cris Muñoz- A Estela Lapponi (que aliás, eu adoro!) tem uma performance que chama-se " La Assimetria es mas linda" Você concorda com essa frase? Por quê?

 

 

Daniel Gonçalves- Entendendo a Assimetria como "diferente" ou "fora do padrão", tendo a concordar com a frase. Repete-se muito a sentença: "todos somos iguais", porém isso não é verdade, mas o contrário: somos diferentes! A beleza está exatamente na diferença, na diversidade. A assimetria também pode ser muito bonita.

 

 

Cris Muñoz- No filme eu, particularmente, vejo uma crítica não apenas à imposição de um padrão corporal, mas também e, de certa forma, consequentemente, a padrões de comportamento, de relacionamento e de expectativas que se relacionam com o ideal do amor romântico. Penso que pessoas que são diferentes tendem a abrir caminhos e que Assexybilidade vem nesse desbravamento de novos espaços de existência e liberdade. O que você pensa sobre isso?

 

 

Daniel Gonçalves-  Acho que o grande mérito do filme é que, embora ele seja sobre sexualidade e pessoas com deficiência, consegue dar conta de várias questões, dentre elas: o que são esses corpos, o que é esse padrão de normalidade ou normatividade? Assexybilidade mostra que existem pessoas com deficiência com diferentes orientações sexuais:  héteros, gays, lésbicas, trans, travestis…

Com relação às mulheres com deficiência, especificamente, o filme aborda o fato de que muitas sofrem abusos ou não são consideradas capazes de ter filhos ou, ainda não se sentem representadas pelo movimento feminista.

Acho que conseguimos abordar muitos assuntos sem, no entanto, sermos rasos ou tornar o filme pesado.

Para mim era muito importante que  essas pessoas fossem ouvidas; não usá-las para construir o meu discurso.

Minha maior referência  para o filme foram os documentários do Coutinho  (Eduardo Coutinho), então creio que  consegui  fazer o que pretendia: mostrar e dar voz a essas pessoas e deixar que contassem suas histórias de dor ou de alegria.

Pessoas com deficiência  ainda são  muito invisibilizadas e quando quem dirige um filme sobre elas é uma pessoa sem deficiência, em geral acaba-se caindo nos dois estereótipos mais recorrentes: ou somos "coitadinhos" ou uma espécie  de "arauto de superação". Não acredito que Assexybilidade caia em nenhum desses lugares estigmatizantes.

Estamos por aí, vivendo. Queremos transar. Aliás, como diz o Pedro, personagem: "Queremos ter uma vida plena como todas as pessoas, tenham elas deficiência ou não."

  

 


Daniel Gonçalves/Foto: Arquivo pessoal

 

 

Sobre o diretor:

 

Daniel Gonçalves é formado em jornalismo pela PUC-Rio e pós-graduado em Cinema Documentário pela Fundação Getúlio Vargas. Tem uma deficiência de origem desconhecida que afeta sua coordenação motora. Trabalhou na TV Globo e hoje é sócio da produtora Seu Filme. Dirigiu os curtas-metragens Tem Bala Aí? (2008); Luz Guia (2012); Como Seria? (2014); e Pela Estrada Afora (2015). Meu Nome é Daniel, seu primeiro longa-metragem, foi exibido em mais de 20 festivais, como IDFA, Festival do Rio, Mostra de São Paulo, Festival de Sydney, Festival de Cartagena e Mostra de Tiradentes. 

 

Foi consultor do curta-metragem A Diferença Entre Mongóis e Mongoloides, dirigido por Jonatas Rubert e premiado no Festival de Gramado de 2021. É consultor e coprodutor de Uma em Mil, longa de estreia de Jonatas e de seu irmão Tiago Puntel Rubert que realizou suas gravações em abril de 2023.

 

Assexybilidade, segundo longa de Daniel, teve sua Premiere brasileira no Festival do Rio 2023, onde recebeu menção honrosa e o prêmio de melhor direção de documentário. O filme será lançado em circuito em 2024.

 


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