A cena pode levar milhares de pessoas a uma série de julgamentos como “Será que é medo de morrer depois?”, “O que se passa na cabeça dela”, entre tantos outros. Mas, a situação é muito mais profunda para que se possa criar definições simplórias em casos tão comuns quanto este. Entre o amor e o medo há uma ponte de curtas reflexões sobre a denúncia, construída com milhares de pedras de violência doméstica.
A história de uma mulher que denuncia o marido por agressão e, posteriormente, pede que ele não seja preso, não é rara. Esse comportamento, muitas vezes incompreendido, é resultado de fatores complexos que envolvem aspectos emocionais, culturais, psicológicos e sociais. Para compreender essa realidade, é essencial abordar o problema com empatia, responsabilidade e conhecimento.
Segundo a psicóloga americana Lenore Walker - fundadora do Domestic Violence Institute - o ciclo da violência doméstica é composto por três fases. Uma que é o aumento da tensão, como pequenas agressões psicológicas ou físicas que se intensificam com o tempo. Uma segunda que é a explosão da violência, ou seja, o ápice do conflito, quando a agressão física ou emocional ocorre de forma mais intensa. E uma terceira, que é a lua de mel, quando o agressor se arrepende, pede perdão e promete mudar.
Esse ciclo cria uma dinâmica de dependência emocional, onde a vítima frequentemente se sente culpada e responsável pela mudança do agressor, mesmo quando sua segurança está em risco. A ciência explica que essa dependência é alimentada por fatores como baixa autoestima, medo de represálias e isolamento social.
O grande problema é que quando uma mulher retira ou tenta retirar a denúncia, frequentemente está sendo influenciada por sentimentos conflitantes, como amor, medo e culpa. Psicologicamente, ela pode ter internalizado crenças sociais que minimizam a gravidade da violência ou valorizam a manutenção da família a qualquer custo.
Além disso, o medo de perder apoio financeiro ou enfrentar o julgamento da sociedade pesa significativamente. Para muitas mulheres, o agressor não é apenas um parceiro, mas também o provedor, pai de seus filhos ou alguém que ainda exerce um controle psicológico sobre ela.
Neste contexto, no Brasil, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) é uma das legislações mais avançadas do mundo no combate à violência doméstica. Porém, ela prevê que a denúncia de agressão seja tratada como crime de ação pública, ou seja, a mulher não pode simplesmente retirar a queixa. Isso ocorre porque a lei reconhece que muitas vítimas, por medo ou dependência, poderiam ser coagidas a desistir do processo.
Por mais doloroso que seja para a mulher, essa medida é necessária para sua proteção e para quebrar o ciclo de violência. O afastamento do agressor, mesmo que temporário, é muitas vezes o primeiro passo para a reconstrução da autonomia da vítima.
Conscientizar-se de que a violência doméstica deixa marcas que vão além do físico é muito importante. Mulheres que sofrem agressões têm maior probabilidade de desenvolver transtornos como depressão, ansiedade e síndrome de estresse pós-traumático. Além disso, crianças que crescem em lares violentos tendem a reproduzir esses comportamentos na vida adulta, perpetuando um ciclo intergeracional de violência. Estas dores causadas pela violência doméstica são profundas, silenciosas e, muitas vezes, solitárias. Elas não são apenas física, mas também emocional, psicológica e espiritual. Por esta razão, os julgamentos não podem e nem devem ser baseados no senso comum.
Para quem vive a violência, aceitar essa dor pode parecer contraditório — afinal, por que alguém deveria aceitar algo tão injusto? Mas a aceitação, aqui, não significa resignação ou conformismo; significa reconhecer o que aconteceu, enfrentar a realidade e, a partir disso, começar o processo de cura. Este processo começa com a compreensão de que ela não é um reflexo da sua fraqueza, mas da crueldade alheia. É reconhecer que o sofrimento que você sente não define quem você é, mas é uma consequência de uma relação marcada pelo desequilíbrio de poder e pela falta de respeito.
Muitas vezes, a vítima tenta minimizar ou justificar o que aconteceu, seja para proteger o agressor, seja para evitar o estigma. Mas negar a dor só prolonga o ciclo de sofrimento. Aceitá-la é dizer a si mesma: "Sim, isso aconteceu comigo, mas isso não é tudo o que eu sou". Então, aceitar a dor também exige coragem para ser vulnerável. É reconhecer que você foi ferida, que se sentiu impotente ou até mesmo culpada. A psicologia ensina que a vulnerabilidade não é um sinal de fraqueza, mas uma ponte para a autenticidade e a força interior. É quando permitimos que nossas emoções venham à tona que encontramos o início da libertação.
Ainda que se carregue uma culpa esmagadora — por não terem saído antes, por terem acreditado nas promessas de mudança, ou por terem se colocado em uma situação perigosa, aceitar a dor significa também perdoar a si mesma. A culpa é uma armadilha emocional que impede o crescimento. Lembre-se: o responsável pela violência nunca é você, mesmo que seja envolvida pela tristeza, raiva, medo — todas as emoções legítimas de quem passou por um trauma — sem se prender a elas.
Aceitar a dor não significa resignar-se à violência ou normalizá-la. Pelo contrário, é um passo para dizer “isso não será minha realidade para sempre”. É reconhecer o que aconteceu, mas também enxergar que é possível reconstruir sua vida, passo a passo por mais difícil que seja.
Comments