Os sonhos e os desejos de uns estão sendo interrompidos pela intolerância e a perplexidade de julgamentos e decisões inaceitáveis de outros.
Por Silver Marraz
Estamos no século XXI, e a intolerância religiosa segue manchando o tecido social brasileiro, evidenciando uma perigosa combinação de desinformação, preconceito e desprezo pelos direitos humanos básicos. O caso ocorrido em Camaçari, Bahia, no qual a professora Sueli Santana foi vítima de intolerância religiosa por parte de seus próprios alunos, não é um evento isolado, mas um reflexo de uma estrutura que perpetua a ignorância e ignora a diversidade religiosa que caracteriza o Brasil.
Sueli, praticante do Candomblé, foi atacada verbalmente em seu ambiente de trabalho, rotulada como "demônia" e "feiticeira". Essas ofensas, carregadas de ódio, partiram de adolescentes que, em tese, deveriam estar na escola para aprender valores de convivência e respeito. Este episódio não apenas expõe a vulnerabilidade de pessoas de religiões de matriz africana, como também revela o papel insuficiente da educação e das políticas públicas no combate a esse tipo de violência.
A intolerância religiosa não nasce do nada. Ela é fruto de uma cultura de desinformação e deslegitimação histórica das religiões afro-brasileiras. Durante séculos, essas práticas religiosas foram marginalizadas, associadas ao "mal" e criminalizadas. A mentalidade colonial, somada ao racismo estrutural, ainda se faz presente, sustentando a narrativa de que crenças não cristãs são inferiores ou perigosas.
No caso de Sueli, os ataques vieram de crianças e adolescentes, um fato que nos obriga a questionar: o que esses jovens têm aprendido sobre respeito à diversidade? O ambiente escolar, que deveria ser um espaço de construção de cidadania, torna-se palco de violências que refletem um grave problema estrutural. Isso aponta para a necessidade de um debate mais profundo sobre o papel da escola na formação ética e cidadã, indo além dos conteúdos curriculares tradicionais.
As Diretrizes Nacionais para a Educação nas Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, instituídas em 2003, estabelecem que as escolas devem promover o reconhecimento e o respeito à pluralidade cultural e religiosa. No entanto, 20 anos depois, o que vemos é uma implementação tímida e superficial dessa política em muitas regiões do país. Enquanto isso, casos como o de Sueli continuam acontecendo.
A situação é agravada pela omissão de diversas autoridades e setores da sociedade. A professora teve que recorrer ao Ministério Público para buscar justiça, mas quantas vítimas de intolerância religiosa sequer têm acesso a esse tipo de recurso? Além disso, a falta de punição exemplar para agressores reforça a sensação de impunidade e alimenta novos casos de violência.
A intolerância religiosa não afeta apenas as vítimas diretas. Ela corrói os valores democráticos e fere o princípio constitucional da laicidade do Estado, que garante a liberdade de crença e culto para todos. É inaceitável que, em um país tão diverso quanto o Brasil, pessoas ainda precisem lutar para exercer sua fé sem serem hostilizadas.
O preconceito religioso também é um reflexo da falta de educação de qualidade. Não se trata apenas de ensinar conteúdos acadêmicos, mas de formar cidadãos conscientes e respeitosos. Para isso, é fundamental que as escolas incluam no currículo discussões sobre diversidade religiosa e cultural, promovendo um diálogo aberto e respeitoso. Mais do que isso, é necessário capacitar professores para lidarem com essas questões de maneira sensível e eficiente.
A sociedade como um todo também precisa refletir sobre suas responsabilidades. As religiões de matriz africana, como o Candomblé e a Umbanda, fazem parte do patrimônio cultural brasileiro e precisam ser respeitadas e valorizadas. Combatê-las é negar uma parte essencial da nossa identidade enquanto nação.
A intolerância religiosa, como qualquer forma de preconceito, não será erradicada apenas com leis. É preciso um esforço conjunto de educação, conscientização e punição rigorosa para os agressores. Precisamos de campanhas públicas que desmistifiquem as religiões afro-brasileiras, mostrando sua beleza, importância e contribuição para a sociedade.
Sueli Santana é mais uma entre tantas pessoas que sofrem caladas com o peso do preconceito. Sua coragem em denunciar os ataques é um exemplo de resistência, mas não podemos depender apenas da bravura individual. É um dever coletivo construir uma sociedade onde ninguém seja obrigado a justificar sua fé ou viver com medo por conta dela.
Enquanto o preconceito religioso for tolerado ou minimizado, estaremos falhando como sociedade. A verdadeira liberdade religiosa só será alcançada quando aprendermos a enxergar na diferença uma riqueza, e não uma ameaça. Para isso, é urgente desconstruir a ignorância e o ódio que alimentam casos como o de Camaçari. Não há espaço para a intolerância em um Brasil que se pretende justo e democrático.
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