O país registra todos os anos, no dia 13 de maio, mais um aniversário da assinatura da Lei Áurea que, na teoria, aboliu a escravidão. Digo na teoria porque, na prática, o negro (e também o branco pobre) é até hoje visto como mão de obra barata ou descartável pelas classes dominantes. Leia-se elite e classe média otária, que pensa que é elite só porque tem plano de saúde e financiou carro e casa própria. Ou então, porque acha que tem o mesmo poder de fogo de um megaempresário só porque possui uma microempresa.
A ética escravagista ainda predomina no Brasil. Motivo-me a escrever a respeito porque uma matéria que li sobre homens negros que, à época da pandemia de covid, estavam sendo ainda mais discriminados por – pasmem! – estarem usando máscara. O fato me deixou triste, revoltado e estarrecido. Se eles já eram vistos como bandidos simplesmente por serem negros, a máscara potencializou a suspeita, o preconceito e, por conseguinte, o risco de sofrerem algum tipo de violência.
Quando li a respeito, pensei sobre o meu comportamento na rua e respirei aliviado. Decerto passei por inúmeros homens negros mascarados e não enxerguei neles qualquer tipo de suspeição. Como sei que passei por eles? Simples; estamos num país miscigenado. Portanto, já passei por negros da mesma forma que passei por brancos, loiros, ruivos, homens, mulheres, crianças, idosos, jovens... Todos devidamente mascarados e protegidos, tal qual eu. Se alguém me chamou atenção nos dias de pandemia foi pelo fato de estarem sem máscara. Felizmente, não fui educado a enxergar os homens negros como potenciais suspeitos. O que enxergo é o preconceito embutido no cotidiano e do qual muita gente não se dá conta.
Nesse quesito, houve um episódio que me tocou profundamente. Foi em dezembro de 2018. Tarde de sol, depois do expediente. Ruas cheias devido às compras de Natal. Andava eu pela Rua 16 de Março, badalada via cheia de lojas bem apessoadas e cafés charmosos aqui de Petrópolis (RJ), quando avistei um rapaz negro, à beira do meio-fio, conduzindo um carrinho cheio de caixas. Ele estava com uma camiseta que o identificava como funcionário de transportadora. Tal qual a época dos senhores de engenho, lá ia o negro musculoso e suado puxando uma carroça. Pelas calçadas, a elite branca (ou seu arremedo), que não tem olhos de ver a escravidão perpetuada naquela cena banal do cotidiano de um país que ainda não se livrou do ranço escravagista. Um país onde justiça social e educação de qualidade para todos ainda são sonhos distantes.
Em dado momento, uma das caixas caiu. Era uma caixa menor que as demais, que tinham o mesmo tamanho. E estava sozinha, por cima de tudo. Fiquei imaginando o peso de toda aquela carga, potencializada pelo calor e pelo horário de verão de um fim de tarde de dezembro. O bravo herói travou o carrinho, largou os puxadores e colocou a caixa novamente em cima da pilha. Tanto eu como ele íamos no mesmo sentido: eu pelo lado esquerdo da via, na calçada; ele, pelo direito, rente ao meio-fio. Não demorou muito para a caixa cair da pilha novamente. Lá foi ele outra vez interromper o percurso para colocar a caixa em cima da pilha. Foi a partir desse momento que passei a prestar atenção de forma mais acurada e pensei: “Se a caixa caiu duas vezes, cairá uma terceira”. E notei que só eu havia atentado para a dificuldade do rapaz, que suava muito, em ter de parar o carrinho de novo para colocar a caixa no lugar. Os demais transeuntes – brancos, em sua maioria – não enxergavam os apuros do trabalhador braçal.
Ele não deu dez passos. Adivinhem o que aconteceu? A caixa foi ao chão novamente. Antes que ele parasse tudo pela terceira vez, atravessei a rua, peguei a caixa e lhe disse:
– Não se preocupe. Eu a levo para você!
Ele, entre surpreso e exausto, disse que não era necessário, pegou a caixa da minha mão e a colocou no lugar. Decerto não estava acostumado com esse tipo de atenção. Ou então, temeu pela carga. Afinal, eu poderia ser um gatuno.
Só que, poucos passos depois, a caixa despencou mais uma vez. Apanhei-a novamente e disse:
– Eu vou levar essa caixa para você! Pode confiar, estou caminhando aqui do teu lado!
E lá fomos nós dois até a galeria do edifício que era o destino da entrega de toda a mercadoria. Decerto, o conteúdo abasteceria alguma boutique do local. Só então a caixa rebelde voltou para a mão do carregador, que me agradeceu, ainda sem acreditar muito na ajuda inesperada que havia aparecido. Pelo que depreendi, a turma que é sempre tratada como invisível acaba se acostumando a sê-lo. Meu gesto havia lhe dado visibilidade e, mais ainda, dignidade.
Eu poderia dizer que fui feliz para casa. Sim, estava feliz por tê-lo ajudado. Ao mesmo tempo, no entanto, uma profunda tristeza me invadiu por eu testemunhar a invisibilidade social que já estudei e debati algumas vezes. Sua presença não havia sido registrada pelos passantes. Ninguém atentou para o absurdo que era um rapaz puxando uma carga decerto pesada, apesar de sua excelente forma física, muito menos os apuros pelos quais ele passava devido à caixa rebelde. Fiquei triste também porque, decerto, aquele homem negro não tinha noção de que ele era vítima de um racismo estrutural secular que o confinava àquele tipo de função. E fiquei ainda mais triste de ver como ainda não nos libertamos da escravidão, que infelizmente ainda dita as regras do nosso ir e vir social.
Tenho olhos de ver e coração para sentir. Dói muito testemunhar essa perpetuação da qual o Brasil dá sinais de não querer se libertar. Mas também tenho olhos de vislumbrar! Por isso, dia virá em que transitarei por entre ruas, praças e avenidas repletas de pessoas sem qualquer resquício de escravagismo, preconceito, exclusão social e afins que já não aguentamos mais.
Por Marcelo Teixeira
BIBLIOGRAFIA
1. BATISTA, Fabiana – Homens negros relatam casos de racismo ao utilizar máscaras na rua. 08/05/2020 – Disponível em https://www.uol.com.br/universa
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