Família, resistência e a ausência como legado brasileiro
Imagine uma pergunta que atravessa décadas: Quando você o enterrou? Essa é a pedra angular de Ainda Estou Aqui, o novo filme de Walter Salles, que não apenas revisita uma das feridas mais profundas da ditadura militar brasileira, mas também nos obriga a encarar a delicada arte de sobreviver ao silêncio. É impossível assistir ao longa sem refletir sobre a brutalidade que marcou um país inteiro – e, ao mesmo tempo, sobre o poder devastador da dúvida.
CRÍTICA POR ANA SOÁRES
Adaptado da obra de Marcelo Rubens Paiva, o filme transforma o desaparecimento de Rubens Paiva, ex-deputado sequestrado e morto nos anos 70, em uma narrativa íntima e universal. Eunice, vivida com maestria por Fernanda Torres, se torna o coração pulsante da trama: uma mãe forçada a equilibrar o luto suspenso com a criação de cinco filhos em um cenário de opressão.
O peso de uma história esquecida
O cinema brasileiro tem sido uma das poucas ferramentas que insistem em manter viva a memória da ditadura. Mas, como sociedade, temos sido generosos com o esquecimento. Quantas Eunices existem por aí? Quantos Rubens permanecem sem respostas? Mais de 20 mil brasileiros foram torturados, e cerca de 434 desapareceram sem deixar rastro durante o regime militar, segundo a Comissão Nacional da Verdade. E ainda assim, quantas dessas histórias ocupam o imaginário popular?
Enquanto Eunice luta para manter sua família intacta, Ainda Estou Aqui ilumina algo essencial: a violência não termina com o ato de tortura ou sequestro, mas reverbera nos que ficam. Quando Rubens desaparece, a luz literal da narrativa se apaga, transformando um lar ensolarado em um espaço sombrio, cheio de incertezas.
Fernanda Torres e a força da memória
Se há um destaque incontestável, é a performance de Fernanda Torres. A atriz entrega uma Eunice multifacetada – vulnerável, mas feroz; silenciosa, mas barulhenta em sua resistência. Sua atuação nos obriga a refletir: quantas mulheres, como ela, carregaram nas costas a missão de proteger a família enquanto desafiavam o sistema?
É impossível ignorar a simbologia de sua jornada. Eunice se formou em Direito aos 48 anos, tornando-se uma voz ativa pelos direitos humanos. Sua trajetória ecoa a de tantas mulheres brasileiras, silenciadas por gerações, mas que, de alguma forma, encontraram a força para resistir e transformar.
Entre o passado e o presente em Ainda Estou Aqui
O filme de Walter Salles chega em um momento crítico, quando o Brasil enfrenta um movimento crescente de negação da história. Afinal, como construir um futuro se insistimos em apagar o passado? Ainda Estou Aqui não se limita a um exercício de memória; é uma provocação. Ele nos desafia a pensar sobre a justiça, ou a falta dela, e sobre como escolhemos lidar com nossas cicatrizes enquanto nação.
Rubens Paiva foi apenas um entre milhares de vítimas da ditadura, mas sua história, como tantas outras, permanece relevante. Eunice e sua família nos lembram que o desaparecimento não é apenas físico; é um ato político que atravessa gerações, nos deixando com a pergunta incômoda: quem somos, afinal, se ignorarmos aqueles que ainda esperam por respostas?
Em tempos de revisão histórica e discursos de ódio, Ainda Estou Aqui se torna essencial – não apenas como cinema, mas como um lembrete de que o esquecimento é a arma mais cruel de todas.
Ainda Estou Aqui (Brasil, França, 2024)
Direção: Walter Salles
Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega (baseado na obra de Marcelo Rubens Paiva)
Elenco: Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello, Otavio Linhares, Maeve Jinkings, Marjorie Estiano, Antonio Saboia, Camila Márdila, Valentina Herszage, Humberto Carrão, Helena Albergaria, Dan Stulbach, Luiza Kosovski, Olívia Torres, Caio Horowicz, Gabriela Carneiro da Cunha, Maria Manoella, Carla Ribas
Duração: 136 min.
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