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Afinal, moda é arte?

Renata Freitas
Reflexões sobre a influência dos movimentos surrealista e modernista na moda

Colaboração em joalheria de Salvador Dalí e Elsa Schiaparelli
Broches em joalheria de Salvador Dalí inspirados em peças da estilista Elsa Schiaparelli (reprodução/instagram @schiaparelli

Para o texto de hoje, resolvi trazer umas reflexões muito interessantes que aprendi em um curso de um professor referência para meus estudos em moda: Brunno Almeida Maia. Um curso online gratuito, oferecido pela Fundação Stickel, chamado 'A morada dos sonhos - moda e surrealismo'. Acho fascinante essa intersecção entre a moda e o movimento surrealista iniciada na década 1920, em Paris. Um movimento estético de vanguarda que englobou pintura, design, arquitetura e moda. Originou-se em reação ao racionalismo e ao materialismo da sociedade ocidental, rompendo com a concepção da tradição pela ruptura da mentalidade da busca pelo eterno na arte. A barreira entre realidade e sonho consciente e inconsciente é suspensa, e é aqui que muito se relaciona com a moda. Para a teoria de moda, esta implica na capacidade de expressar os fatos de seu tempo histórico, representando o espírito de seu tempo, o "zeitgeist". Aproxima-se das artes performáticas porque precisa de um corpo em movimento.


Imagem: surrealista Salvador Dalí e estilista Elsa Schiaparelli em colaboração (reprodução/instagram @schiaparelli


O tema da aula era a moda como arte. Fazendo uma contraposição de ideias e a transição de mentalidades daquele período, temos dois filósofos que trazem grandes contribuições acerca da relação entre arte, artista e público. Para Hannah Arendt, em sua visão eurocêntrica, a produção artística vincula-se ao eterno e não possui finalidade de uso; é o fim em si mesmo; A arte transcende a finitude do artista e seu tempo histórico, tornando-se clássica pela sua capacidade de repetição e atualização da tradição pelo tempo, sendo moderna e tradicional ao mesmo tempo. Já para Walter Benjamin, a arte carregava dois valores intrínsecos: o valor de culto, em que obras antigas eram consagradas aos deuses, feitas em referência ao divino prestando-lhe tributos em festas sacrossantas e eram dotadas de aura, onde a dialética entre distância e proximidade mantém a tensão necessária que gera esse valor.


A arte serve para simplesmente alargar a experiência do sensível, dando forma ao acaso da vida, transformando o conteúdo imaterial em material, onde a simbolização desses conteúdos traz ordem e possibilidade de sentido como uma moldura. Já o valor de exposições é exemplificado por produções artísticas do século 19 em fotografias e sinfonias com a possibilidade de reprodução mecânica, perdendo a noção de distante inalcançável como as obras divinas, tornando-se excessivamente próximas, como o que vemos na arte contemporânea, que busca aproximar a obra de arte ao cotidiano. Para muitos modernistas e surrealistas, a mera exposição em museu com intermediação de instituições já é uma violência que recolhe a obra a espaços privados, contrariando o objetivo de se fazerem presentes e confundirem-se com o cotidiano.


É daí, então, que surge o conceito de roupa de artista, que se refere a vestimentas inspiradas em movimentos artísticos, como o modernismo, o fauvismo, o futurismo e o surrealismo, unindo a produção artística em expressões subjetivas ao objeto útil de uso cotidiano da roupa. Diluem-se os limites estéticos de técnica, as várias linguagens da arte se conversam e se confundem. Para ilustrar, o professor traz o desfile "A costura do invisível". Nas palavras retiradas do site do estilista Jum Nakao: "Em 17 de junho de 2004, no maior evento de moda da América Latina [São Paulo Fashion Week - SPFW], elaboradíssimas roupas construídas em delicado papel eram desfiladas por modelos com perucas "playmobil" numa performance que simulava um desfile de moda. As roupas foram confeccionadas em papel vegetal de diversas gramaturas e modeladas milimetricamente sobre os corpos das modelos de forma primorosa, filigranas entalhados manualmente reproduziam rendas, gravações em altos e baixos relevos simulavam brocados. Foram consumidas meia tonelada de papel e mais de 700 horas de trabalho. Ao final todos os vestidos meticulosamente construídos foram destruídos em cena pelas próprias modelos." Aqui temos um perfeito exemplo de uma produção artística de moda pela perspectiva do modernismo, em contraponto ao conceito de arte elaborado por Hannah Arendt, onde a tradição busca o eterno. Esse desfile traz a subversão dessa ideia nas roupas de papel rasgadas no palco, na atitude iconoclasta e modernista de questionar os ícones.


Imagem: desfile "A costura do invisível", do estilista Jum Nakao

Novamente, trago outros dois conceitos presentes nos estudos de moda de Walter Benjamim, importante figura para seu estudo por essa abordagem. A obra de arte possui duas características: o contexto histórico e o contexto de verdade. Analisando o desfile mencionado por esses contextos, historicamente observamos o alarmismo sobre o destino da moda eurocêntrica com o surgimento de "fast fashions" e as efemeridade das redes sociais, no início do século 21. Em seu contexto de verdade, o estilista traz em sua estética referências do século 19 que consolidaram o que conhecemos como história da moda em suas mangas bufantes, volumes e formas, sinalizando que essas formas estariam ultrapassadas, caminhando para sua representação lúdica, perdendo o valor de referência. E, rasgando as roupas, surge o corpo natural, onde a moda busca a transcendência de si pela artificialização desse corpo humano pela vestimenta que, hoje, é considerada pela teoria da moda como tudo aquilo que tem a capacidade de modelar ou remodelar o corpo: óculos, próteses, redesignação sexual, cirurgias plásticas, tatuagens, escarificação, piercings... Expressões da capacidade humana técnica de construir artifícios que alarguem nossa percepção de mundo e de nós mesmos.


A partir destas exposições em conceitos e teorias de arte e moda, só podemos concluir que a moda é arte, já que o experimentalismo das obras modernistas e surrealistas se aproximam das experimentações efêmeras da moda. O efêmero e transitório da moda tem seu valor justamente pela sua finitude, assim como sua aproximação do cotidiano. A moda e, enfim, nossas roupas como produção artística de expressão subjetiva, política e de identidade.


Renata Freitas

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