Em nosso texto anterior, expusemos as projeções sobre o futuro, isto é, para onde vamos em termos de aquecimento global. Mas para entender melhor o movimento no qual nos encontramos, temos de olhar para o passado. Um passado relativamente recente – quando se deu a chamada “Grande Aceleração”. Se a história do Planeta se encontra agora na época dos humanos (o antropoceno), a expressão mais clara disso é a chamada Grande Aceleração: momento singular e disruptivo da história em que a voracidade por energia, matéria e bens de consumo atinge uma escala monumental em termos de velocidade e de abrangência espacial.
Para ter um vislumbre do que estamos falando, observe o gráfico abaixo, que revela curvas de aceleração em diversos indicadores da “pegada humana” (população, PIB, uso da água, produção de papel, de automóveis, uso de energia, McDonald’s, concentração de gases de efeito estufa na atmosfera, extinção de espécies etc.).
Vejamos alguns números representativos dessa tendência global. Desde 1945, o número de automóveis saltou de 40 para 985 milhões em 2010 e, hoje, para 1,4 bilhão, devendo chegar a 2 bilhões em 2030. A população triplicou, sendo que o número de habitantes das cidades constitui hoje uma maioria de cerca de 57%. A produção de plástico explodiu de cerca de 1 milhão para aproximadamente 300 milhões de toneladas entre 1950 e 2015. E, talvez o número mais impressionante: três quartos das emissões totais de CO2 por atividade humana se deram ao longo do tempo de vida das três últimas gerações! (McNeill e Engelke, 2014 e Marques, 2018).
Esse combo explosivo nos mostra que o consumo de energia e de matéria disparou por meio de uma combinação de novas tecnologias, sob o impulso de um capitalismo turbinado pela globalização do pós-guerra. Assim, forjou-se uma civilização do consumismo de massas (é claro, com profundas desigualdades).
Teremos ocasião de falar sobre vários aspectos dessa grande aceleração, como a chamada crise da biodiversidade – ou a sexta grande extinção em massa. Ou ainda seu brutal impacto psicológico e espiritual. Por ora, vamos nos concentrar na grande aceleração da concentração de gases de efeito estufa e da velocidade do aquecimento global.
Entre 1960 e 1969, o aumento do CO2 atmosférico se deu à taxa média anual de 0,85 partes por milhão (ppm). Já entre 2015 e 2020, esse aumento acelerou para uma taxa média anual de 2,55 ppm. Isso significa que a velocidade do aumento da concentração de CO2 triplicou em apenas meio século!
Aumento das concentrações atmosféricas de CO2 (curva de Keeling) entre 1958 e 2021
Nas palavras do cientista climático Ken Caldeira: “Estamos recriando o mundo dos dinossauros cinco mil vezes mais rápido” (Marques, 2023).
Ou seja, a velocidade do aumento de concentração de gases de efeito estufa e o consequente aquecimento global não têm precedentes na história do Planeta, mesmo se pensarmos no evento geológico desencadeado pelo impacto do meteoro que causou a última grande extinção em massa da Terra há 66 milhões de anos.
Caminhões enormes, alguns cheios de areia oleosa e outros esperando enchimento, em uma mina de areias betuminosas ao norte de Fort McMurray, Alberta, Canadá. Da operação de mineração, a areia é transportada para uma instalação onde o betume é separado da areia. Crédito: Michael Kodas / Inside Climate News
A espetacular missão que se apresenta para a humanidade hoje não se trata, portanto, simplesmente de começar a reduzir as emissões como uma mera manobra técnica. É todo um movimento civilizacional expansivo e em aceleração que se expressa, tragicamente, numa disparada do aquecimento global.
A razão mais profunda, estrutural, para essa Grande Aceleração encontra-se no capitalismo, pois esse modo de produção é intrinsecamente expansivo. O processo de acumulação de capital implica um incessante movimento de ampliação da sua base material, já que precisa aumentar a quantidade de unidades produzidas para compensar a redução do valor unitário das mercadorias resultante do contínuo aumento do nível geral de produtividade (Barreto, 2022). Capital investido que não retorna valorizado é um capital que esgota a si mesmo no circuito da concorrência. A história do capitalismo fornece o apoio empírico a esse raciocínio.
Ao reconhecermos essa relação causal em que o capitalismo funciona como a principal força motriz da Grande Aceleração, fica evidente que as consequências crescentemente catastróficas dessa última só podem ser evitadas ou ao menos mitigadas com o fim do capitalismo. É imperativo, para um habitar sustentável no Planeta (e para nossa própria sobrevivência), a superação do capitalismo em favor de alguma alternativa que não exija um interminável crescimento da produção, isto é, um aumento incessante da demanda de matéria e de energia.
A revolução de que precisamos, portanto, não pode ser concebida como uma ultrapassagem do capitalismo em termos de produção quantitativa de bens, mas sim a capacidade de uma consciente e organizada autocontenção. A primeira fase dessa revolução deverá ser como puxar um freio de emergência da civilização que ruma aceleradamente para o abismo de sua autodestruição.
Para saber mais, recomendo:
BARRETO, Eduardo Sá. O capital na estufa: para a crítica da economia das mudanças climáticas. Rio de Janeiro: Consequência, 2019.
_______. Ecologia marxista para pessoas sem tempo. São Paulo: Usina Editorial, 2022.
BONNEUIL, Christophe e FRESSOZ, Jean-Baptiste. L’événement Anthropocène : la Terre, l’histoire et nous. Paris: Éditions du Seuil, 2016.
MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Campinas: Editora da Unicamp, 2018.
_______. O decênio decisivo: propostas para uma política de sobrevivência. São Paulo: Editora Elefante, 2023.
McNEILL, J. R. e ENGELKE, Peter Engelke. The great acceleration: an environmental history of the anthropocene since 1945. Cambridge, MA: Belknap Press of Harvard University Press, 2014.
WALLACE-WELLS, David. A terra inabitável: uma história do futuro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
Canal no YouTube: O que você faria se soubesse o que eu sei? sob o comando do prof. Alexandre Araújo Costa.
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